quinta-feira, 1 de março de 2018

O JARDIM DE NENÚFARES DE IRVING PENN


No final do filme “O navio” o barco afunda-se. Ao som de “La forza del destino”, o barco desaparece. Ou quase. No final apercebemo-nos que é tudo ilusão. O cenário das filmagens aparece aos nossos olhos.  Até o crepúsculo é feito de plástico.  Poderia bem ter sido a última obra de Fellini. Pelo tom operático do final. Pelo tom nacarado que perpassa pelo filme. É, seguramente, impressão minha, mas muitas obras finais têm esse tom de névoa e de despedida. Desde logo, o título original (“E la nave va”) soa a partida sem retorno.
Nas últimas décadas de vida, Claude Monet dedicou-se a pintar o que lhe estava próximo. Começou por experimentar os diferentes tons de cor na série da catedral de Rouen. Um photoshop praticado com a paleta em cerca de três dezenas de telas. Aos 60 anos, Monet começou a pintar os nenúfares do seu jardim. As últimas duas décadas de vida foram maioritariamente ali passadas. O tema dos seus interesses estava ali, a curta distância. Via cada vez pior. As cataratas atormentavam-no. O seu mundo fechava-se.
Não pude deixar de reparar que o irrequieto Irving Penn (1917-2009) passou pelo mesmo processo de introspeção, nos últimos anos em que viveu. E Penn fotografou até ao fim. Na recente exposição biográfica organizada no “Grand Palais”, em Paris, a mostra encerra com uma imagem de 2007, uma cafeteira com três andares. Aos 90 anos, seria no estúdio que passava mais tempo. Longe andavam os tempos em que, ao serviço de várias revistas ou por interesse pessoal, percorria o Benim, Marrocos, a Nova Guiné, o Nepal ou o Peru. Os objetos e a proximidade a coisas pequenas foram o jardim de nenúfares de Irving Penn. A moda, os anúncios, a outrora subvalorizada série de imagens sobre cigarros fizeram parte desse progressivo aproximar às pequenas coisas.
Mais desafiadora foi a série final de Robert Mapplethorpe (1946-1989). Sabendo-se condenado pela doença, fez um autorretrato marcado pela frontalidade. O seu rosto cadavérico tem contraponto no bastão que segura, e cujo punho é uma pequena caveira.
Os coros de ópera, os nenúfares que se diluem na luz, os objetos fotografados de muito perto, os autorretratos finais, as ampliações de pequenas coisas fazem parte do mesmo universo. Aquele em que nos refletimos e em que procuramos pequenas e grandes respostas.


Crónica publicada hoje em "A Planície"

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