sábado, 1 de abril de 2017

FOTOGRAFIA - 1967/2017

A fotografia data do verão de 1967. Estou em pijama e cabelo cortado à tijela, na cozinha de uma casa em Montenegro, perto de Faro. Lembro-me da casa por causa dessa fotografia e porque um dia, em frente à casa, um cão se atirou a um motociclista, deixando-o maltratado. No retrato estou eu, orgulhoso, com uma máquina fotográfica de plástico ao pescoço. Quando clicava no obturador, saía da lente uma cabeça de leão... Eu achava que estava a fotografar. Na realidade, era um gesto de imitação. Por causa do João. O João andava quase sempre com uma Regula King, de fabrico alemão, que comprara em Luanda. Às vezes deixava-me disparar, e eu achava graça aqueles risquinhos que se viam quando espreitava pelo visor.
A fotografia foi-me útil anos mais tarde. Por razões profissionais e terapêuticas. Escondia uma crónica timidez detrás das lentes. Um amigo trouxe-me dos Estados Unidos uma Nikon FM2, com uma magnífica lente de 50 mm (1:8). Foi a primeira máquina a sério. A necessidade de fazer registos dos trabalhos de arqueologia levou-me a investimentos pesados: uma Leica R7 primeiro, uma Leica M6 dois anos mais tarde. Esta em especial, silenciosa e com uma lente extraordinária, passou a ser companhia fiel. De dia e de noite. A timidez continuou, anos a fio, quase sem cura. Deambular pelo Magrebe, pelo Médio Oriente e por África tornou-se, até me tornar autarca, parte da minha vida e da minha auto-formação. Rolos a preto e branco FP4 (125 asa) e HP5 (400 asa), usados consoante as circunstâncias. As máquinas tornaram-se introspeção e reflexão. Enquanto me concentrava naquilo não pensava noutras coisas. Enquanto tentava resolver os enquadramentos, não me preocupava com outros assuntos. Fotografar tornou-se, cada vez mais, um ato solitário e compensador.

Interessam-me as sombras, os reflexos e as diagonais. Não sou um bom fotógrafo. Não tenho, por isso, traumas nas vezes em que falhei e nas muitas coisas menos boas que fui fazendo. Lá para trás, ficaram duas pessoas: o miúdo de pijama que clicava numa máquina de brincar comprada em Ayamonte, e o adolescente que fazia "reportagens" à beira do Ardila no meio de infináveis patuscadas. Fotógrafo? Nem por sombras. Um homem na casa dos 50 que gosta de fazer retratos. Em maio, haverá uma pequena exposição de rua sobre espaços de culto, durante o Festival Islâmico, em Mértola. A partir de outubro, as máquinas ressuscitam. Se ainda não tiverem ganho ferrugem.

Crónica publicada hoje, em "A Planície"

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