segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

TOPONÍMIA URBANA

A toponímia urbana é uma bolsa de valores, volúvel e rápida. Reflete, por norma, a ascensão e queda de gerações de políticos, a popularidade, duradoura ou efémera, de atores, escritores e atrizes, ou ainda de protagonistas locais, com desempenho de relevo numa época determinada.

Os séculos XIX e XX desgraçaram, nesse aspeto, a paisagem urbana. A burguesia liberal resolveu imortalizar os seus protagonistas políticos. Nomes e mais nomes de personagens hoje relativamente desconhecidos, e que dão vontade de fazer um quizz “diga lá quem foi Hintz Ribeiro”, “qual o cargo desempenhado por Rodrigues Sampaio?”. Felizmente, Moura escapou ao flagelo.

Os meus nomes preferidos são os antigos e tradicionais. Os que remetem para o sítio em si, como Cerro do Benfica, em Mértola (Benfica não por causa do glorioso SLB, mas por corruptela de Bab al-Madiq, porta do estreito, em alusão ao ponto de passagem que dava acesso à vila). Os misteriosamente pré-romanos, como Marvila. Ou, no caso de Moura, os que nos levam a cemitérios da Alta Idade Média, como Santa Justa. Os que recordam bairros antigos, e nisso a Mouraria, com Primeira, Segunda e Treceira (atenção, Treceira e não a banalidade de uma Terceira) ruas, a todos leva a palma. Gosto da ressonância medieval de algumas das nossas artérias, como a dos Ourives, a dos Albardeiros, a da Verga, que há tempos mudou de nome. O povo é quem mais ordena? Sim. A Rua das Tendas, belo nome, é agora Conselheiro Augusto de Castro. É? Não é nada. Toda a gente a conhece como Rua da Jopal, em alusão a um estabelecimento comercial ali situado. Mais curiosa ainda é a Brecha do Jardim, que tem, desde há poucos anos, nome oficial. Brecha porquê? Porque em 1707, as tropas do Duque de Osuna minaram as muralhas novas em diversos pontos, originando brechas. Uma delas manteve-se, firme, na memória da cidade, até aos nossos dias. Já lá vão mais de 300 anos.

Termino com a alusão a algumas originalidades da toponímia recente. Tenho um especial afeto pela “praceta” (por norma sinónimo de um lote sugado até ao osso e onde se deixou, no meio, uma árvore raquítica), mas nada supera o profundo mistério da “rua projectada”. No caos suburbano dos anos 70 eram frequentes designações como “Rua Projectada à Calçada da Quintinha” ou, melhor ainda, “Rua Projectada à Rua 3”. Escusam de checkar, existem mesmo. Tais designações causavam fúria e desespero a transeuntes e taxistas, perdidos e à nora em novas urbanizações onde os pontos de referência habituais – a igreja, o velho café, o chafariz, o jardim – tinham desaparecido.

Ruas projetadas não temos. Mas temos de projetar o sítio ao qual daremos o nome a homens como João de Morais (que traçou a igreja do Espírito Santo) ou António Rodrigues (que desenhou o edifício dos Quartéis). Ou ainda Faraj ibn Khayr al-Tutaliqi, nascido no nosso concelho no século X  e que se tornou um célebre gramático na corte do califa, em Córdova.


Crónica publicada em "A Planície" de 8.1.2015. Rua da Saudade, coisa de um País de líricos... Em Moura há uma.

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