terça-feira, 4 de novembro de 2014

ESTIMADA DONA FRANCELINA

Não sei se ainda estará entre nós. Deverá andar pelos 95 anos, perto disso. A sua figura era, no mínimo, invulgar, mesmo tendo em conta que a palavra invulgar não queria dizer grande coisa, na Faculdade de Letras daqueles anos. Os seus cabelos brancos, a sua longa écharpe, a maneira jovial de se sentar em cima das mesas e de fumar cigarro após cigarro davam-lhe uma imagem única. Era a aluna mais velha de História da Arte. O estilo descontraído herdara-o das Belas-Artes, onde andara no final dos anos 40. Embora insistisse num tratamento informal nunca conseguimos deixar de lhe chamar “Dona Francelina”.

Lembro-me de si com regularidade. Lembro-me, em especial, do dia em que pegou num braço e me arrastou corredor fora, na Faculdade de Letras, até um canto mais tranquilo. Aí chegados, fitou-me de ar sério e disparou “olha lá filho, tu és bom aluno e podes fazer qualquer coisa de jeito; mas andas aí numa vida e numa agitação… estou preocupada contigo; olha o que aconteceu ao Zé Dias…”. Lembro-me do torpor que senti, enquanto as sinapses tentavam funcionar. Só passados largos segundos percebi que a senhora se referia ao militante comunista José Dias Coelho, assassinado pela PIDE em 1961, aos 38 anos. Tinham sido colegas, claro está. Tentei tranquilizá-la e prometi-lhe, mentindo conscientemente, que iria mudar.

O seu ar reprovador nunca me abandonou, nos últimos dois anos de faculdade, os mais intensos politicamente e aqueles em que percebi que aquele ambiente de minuetos, vénias e traições não era para mim. Lembro-me de a ver abanar a cabeça com desalento, sentada na secretária à entrada do Instituto de História da Arte, enquanto eu distribuia comunicados ou afixava a pauta de classificação dada aos professores, uma originalidade que me custou caro… Também não ficará surpreendida se souber que dos média-16 do curso de História 81/85 só o Carlos Almeida, eu e mais um ou dois estamos fora daquele sistema.

Neste ano que passou, a sua recordação tem sido recorrente. Acho que, no fundo, a senhora sabia que eu não encaixava ali e que faria outras coisas na vida. Confesso-lhe que, tanto na juventude como depois, a ideia de ser Presidente da Câmara de Moura nunca me ocorreu. Também não se surpreenderá, Dona Francelina, se lhe disser que desempenho o cargo com todo o afinco e tentando fazer o melhor possível. Ou como diz, sibilino, um amigo meu “tudo isto foi uma evolução natural”.

Despeço-me, mesmo sem saber de si, com amizade e com saudades daqueles dias,
Santiago Macias (20.10.2014)


Crónica publicada em A Planície, no passado dia 1 de novembro.