quarta-feira, 11 de julho de 2012

O RELATÓRIO

A história é verídica e aconteceu há muitos anos. Naquele tempo, comecemos assim, que a narrativa merece, ainda não havia SIADAP nem a quantidade de estúpidos e inúteis relatórios e formulários que hoje temos de preencher. Mas a ameaça começava a esboçar-se.
Foi o que aconteceu naquele serviço. Chegou um jovem chefe. Vinha carregado de fórmulas e de gráficos. A rentabilidade, a ra-cio-na-li-za-ção, palavras assim. Achou que estava na ordem de organizar as coisas, de estabelecer hierarquias, de arrumar as peças e de dar um toque europeu e ocidental aquele setor de barbas por fazer e palitos ao canto da boca. Olhou em volta e escolheu o motorista mais antigo e mais credenciado. Arvorou-o em chefe do parque de máquinas ou coisa parecida. A partir daquele momento seria ele, o mais antigo e o mais credenciado, a reportar perante si próprio. Com um relatório. De forma moderna e europeia.
Durante uma semana, o serviço correu como sempre. Carros que saíam, carros que entravam, reparações, problemas a resolver, problemas que se resolviam.
Ao fim de uma semana, chegou o grande momento. Era necessário entregar o relatório. O tal relatório que poria o serviço, outrora antiquado e de palito ao canto na boca, no limiar da modernidade e do progresso. O motorista, o mais antigo e credenciado, estendeu ao novo chefe uma folha, onde estava o relatório, relatando o que devia ser relatado. O chefe olhou o papel e empalideceu. Eu não assisti e não posso jurar, mas acho que empalideceu. O relatório, o tal que iria lançar aquele setor na senda de uma germânica eficiência dizia apenas “ESTÁ TUDO NORMAL”. Claro ! Se estava tudo a correr bem e nada havia a dizer, que raio deveria ele escrever? O motorista mais antigo não sabia que a isso se chama “gestão por exceção”, mas o jovem chefe aprendeu depressa e desistiu dos relatórios e permitiu que o serviço voltasse ao velho e eficiente ritmo. Como aquele treinador de Beja que, ante o mau desempenho da equipa, declarou no intervalo “na segunda parte não há tática nem meia tática; ou seja, na defesa porrada, na avançada rematar às redes”. Os relatórios são necessários? São. A organização também. Mas nada pior do que querer impor esquemas de funcionamento rígidos e seguindo manuais e receitas.
O motorista está, há muito, reformado. Ainda no outro dia me cruzei com ele numa rua de Moura. Não lhe falei nesta história, com a qual três pessoas muito aprenderam: ele, o chefe dele e eu próprio.



Relator da era pré-computador recebendo a visita de um comissão de acompanhamento

Crónica publicada no jornal "A Planície" - 1.julho.2012

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