quinta-feira, 31 de maio de 2012

REGENERAÇÃO URBANA: RIBEIRA DA PERNA SECA (SOBRAL DA ADIÇA)

Regeneração urbana, mas não em Moura. E numa freguesia que não é urbana (Sobral da Adiça).

A obra que se vê na imagem é a da regularização do curso da ribeira da Perna Seca. Uma intervenção em curso, depois de um longo calvário técnico e burocrático.

Sucessivos governos (PS e PSD) viraram as costas a este problema. Os deputados do PS, incluindo os de Beja, chegaram a votar a favor do financiamento do projeto quando o PSD era governo, para depois mudarem de opinião quando o PS passou para o poder. Foi nesse dia que suprimiram, decerto, duas palavras no dicionário: coerência e decência.

O valor da intervenção é 1.629.730 euros. A obra é integralmente financiada pela Câmara Municipal de Moura.
 
 

João Dinis, presidente da junta de freguesia de Sobral da Adiça (PS) disse, ao jornal A Planície de 15.10.2009: "… eu considero que a Câmara, por si só, não tem capacidade financeira para realizar a obra, mas tem de interceder junto de outras entidades…".
No jornal A Planície de 1.2.2010 a secção de Moura do Partido Socialista declarava que esta obra não é da responsabilidade da Administração Central.

Vale a pena recordar, uma vez e outra, estas posições. É que a memória, por vezes, é curta.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

VICENTE RUIZ "EL SORO"

 

Faz hoje 50 anos Vicente Ruiz El Soro. É o único sobrevivente do cartel que atuou na Praça de Touros de Pozoblanco, em 26 de setembro de 1984.

A sucessão de factos é impressionante:

Paquirri morreu nessa tarde;
José Cubero El Yiyo perdeu a vida, na praça de Colmenar Viejo, em 30 de agosto do ano seguinte;
Juan Luis Bandrés, um dos ganadeiros, foi assassinado em 1988;
Finalmente, Vicente Ruiz sofreu um acidente na praça de Benidorm, em 8 de abril de 1994, que o afastou dos ruedos para sempre.

Um conjunto de circunstâncias que fizeram entrar para a História uma corrida, destinada, à partida, a ser apenas mais uma tarde de touros.

ATENÇÃO, QUE EU NÃO SOU GREGA

Christine Lagarde disse que os gregos deviam pagar os seus impostos.
Christine Lagarde ganha por ano, enquanto diretora do FMI, 438.940 euros. Livres de impostos.
Ora bem, Christine Lagarde é francesa.
Alguém a ouviu dizer que os franceses deviam pagar os seus impostos?
Ninguém ouviu, pois não?
Então, onde é que está a incongruência?
Sim, onde?
 
 

terça-feira, 29 de maio de 2012

MAIS OUTRA ABSTENÇÃO VIOLENTA, AGORA EM VERSÃO RESTAURADOR OLEX


"Não estamos de sorriso rasgado, mas conseguimos um acordo", disse Fernando Ruas, presidente da câmara de Viseu e da ANMP, depois de se ter posto de gatas à frente do governo.

Mai nada. Não sorria e dê-lhes no osso. Assim já se percebe o ar chateado de Miguel Relvas, ontem à noite.

Quando assinar o acordo, Eng. Ruas, leia-lhes aquela parte do Pulp Fiction: "The path of the righteous man is beset on all sides by the iniquities of the selfish and the tyranny of evil men. Blessed is he who, in the name of charity and good will, shepherds the weak through the valley of darkness, for he is truly his brother's keeper and the finder of lost children. And I will strike down upon thee with great vengeance and furious anger those who attempt to poison and destroy my brothers. And you will know I am The Lord when I lay my vengeance upon you."
Vai ver, o Relvas não volta a sorrir nos cinco minutos seguintes...

ANTÓNIO ZINGA

 


Os anos 70 foram uma época de inexcedível mau gosto. Não sei o que foi pior: os Bee Gees? os sofás brancos? as calças à boca de sino? os penteados? os sapatos de homem de tacão alto? as mariconeras, que ganharam no Comité Central do PCP um verdadeiro nicho de mercado? A diversidade de escolha é imensa. Recordo, a nível doméstico, um verdadeiro cume do kitsch: as cores berrantes usadas no interior das casas. Na minha, em Queluz, a paleta era alargada: púrpura no átrio de entrada, azul ferrete na sala, verde água num dos quartos, camurça no outro. Ou seja, a dietilamida de ácido lisérgico em versão DYRUP. Tout va avec, a alcatifa era azul petróleo.

A dada altura, em 1973 ou 1974, o João tomou-se de amores pelas pinturas de um angolano, que enxameavam as paredes das casas dos amigos, cuja atividade profissional os levava amiúde a Luanda. Eram imagens de pores do sol ou de queimadas, num amarelo e vermelho de fazer doer a vista. O João olhou um dos quadros, emitiu um parecer técnico "eh, pá, tá bestial! como é que o gajo faz isto?" e encomendou uma tela. Chegou semanas mais tarde, com a assinatura "António Zinga" em cursivo. Ficou na sala, sobre o azul ferrete da parede.

Na net não há vestígios de António Zinga. Aqui fica algo semelhante à sua arte. O original deve ter-se perdido numa das várias mudanças. Ou talvez não. Há sempre o risco deste fantasmas emergirem, quando menos se espera.






segunda-feira, 28 de maio de 2012

MÃOS AO AR! ISTO É UM ACORDO!

O presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses, que é do partido do Governo,  dizia, na passada sexta-feira: "nos últimos três anos foram-nos retirados mil milhões de euros."

Hoje, Governo e ANMP chegaram a um acordo que prevê uma linha de crédito no valor global de mil milhões de euros para permitir às câmaras resolver o pagamento das dívidas de curto prazo.

Trocando por miúdos: o Governo empresta às autarquias o que lhes reteve, e que dizia respeito à participação nos impostos do Estado. Esta golpada conta, desgraçadamente, com a conivência de muitos autarcas. A quem sobra em servilismo o que lhes falta em coluna vertebral.

Dá vontade de rir, não dá? Eu, se estivesse no lugar do Prof. Gaspar também riria assim, a bandeiras despregadas.
 
 

ZAPPING

Não deve ser a mais excitante cena de sexo da história do cinema. Nem sequer a mais ternurenta. Ou a mais glamorosa. Mas é, decerto, a mais divertida. Intervêm Jon Voight, a pouco convencional Sylvia Miles e um comando à distância. Uma homenagem, também, a Eugene Polley, há pouco desaparecido. Trata-se aqui, no fundo, de um pouco de zapping sexual...


O filme é Midnight cowboy, de John Schlesinger, rodado em 1969. Uma obra um pouco datada, mas que conserva o título de único filme com a classificação X a ganhar o óscar de melhor película.

domingo, 27 de maio de 2012

EM TERRA FIRME

Sábado mourense. Uma longa jornada com um grupo de alunos de um mestrado da Universidade Nova. Qual o desafio? Percorrer os projetos em construção, perceber as dificuldades, as vitórias e os fracassos de cada processo. Como se financia? Como se montam as diferentes "engenharias"? Como se prepara o caminho futuro? Como se conjuga o hardware que agora se adquire como o software que depois garantirá o que virá a seguir? Apetece citar o imortal Jeremy Hillary Boob: "Ad hoc, ad loc and quid pro quo. / So little time - so much to know".

Aqui vai o que foi o menu do dia, numa terra onde alguma gente assim um pouco distraída garante que nada se passa:

* Pátio dos Rolins - posto de turismo inaugurado em 27.2.2009
* Castelo - com visita às obras do edifício de receção ao turista (serão retomadas no princípio de junho) e à alcáçova (visitável a partir de finais do mesmo mês)
* Museu de Joalharia Contemporânea - inaugurado em 26.2.2011
* Mouraria - obra em curso
* Matadouro - obra de reabilitação em curso
* Jardim das Oliveiras - inaugurado em 12.5.2012
* Lagar de Varas
* Quartéis - obra de arranjos exteriores em fase de conclusão; concurso para a conclusão da obra de reabilitação do edifício alançar no próximo mês, depois do conturbado processo de falência da empresa
* Convento do Espírito Santo - visita à futura Galeria de Exposições Municipal, obra que será lançada a concurso no mês de junho

Nada mal, para um sítio onde nada acontece...
 
  
Torre de menagem do castelo de Moura: escada de acesso ao terraço

sábado, 26 de maio de 2012

2000


E assim se chega ao texto 2000 aqui do blogue. Na realidade, foram mais alguns, mas um vírus arreliador obrigou-me a apagar uns quantos. Este é, portanto, o nº 2000 dos que se conservam.

Porquê esta fotografia? Porque Spencer Tunick fotografou, há cinco anos, 2000 pessoas nuas num silo de estacionamento. É uma questão de coincidência numérica.

Site do fotógrafo: http://www.spencertunick.com/

OS JOGADORES

Recordei, há tempos, a lista de quadros mais caros do mundo. Este Les joeurs de cartes, de Cézanne, não integrava o grupo, porque só há pouco tempo foi transaccionado. Foi comprado pela família real do Qatar, pela bagatela de 250 milhões de dólares.

A placidez dos jogadores contrasta com o jogo pelo jogo da ode de Ricardo Reis. Mas nestas coisas, nunca se sabe onde termina o jogo e começa a realidade. Afinal O que levamos desta vida inútil / Tanto vale se é / A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida, / Como se fosse apenas / A memória de um jogo bem jogado / E uma partida ganha / A um jogador melhor.


Os Grandes Indiferentes 

Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia
Tinha não sei qual guerra,
Quando a invasão ardia na cidade
E as mulheres gritavam,
Dois jogadores de xadrez jogavam
O seu jogo contínuo.

À sombra de ampla árvore fitavam
O tabuleiro antigo,
E, ao lado de cada um, esperando os seus
Momentos mais folgados,
Quando havia movido a pedra, e agora
Esperava o adversário.
Um púcaro com vinho refrescava
Sobriamente a sua sede.

Ardiam casas, saqueadas eram
As arcas e as paredes,
Violadas, as mulheres eram postas
Contra os muros caídos,
Traspassadas de lanças, as crianças
Eram sangue nas ruas...
Mas onde estavam, perto da cidade,
E longe do seu ruído,
Os jogadores de xadrez jogavam
O jogo de xadrez.

Inda que nas mensagens do ermo vento
Lhes viessem os gritos,
E, ao refletir, soubessem desde a alma
Que por certo as mulheres
E as tenras filhas violadas eram
Nessa distância próxima,
Inda que, no momento que o pensavam,
Uma sombra ligeira
Lhes passasse na fronte alheada e vaga,
Breve seus olhos calmos
Volviam sua atenta confiança
Ao tabuleiro velho.

Quando o rei de marfim está em perigo,
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O saque pouco importa.
E quando a mão confiada leva o xeque
Ao rei do adversário,
Pouco pesa na alma que lá longe
Estejam morrendo filhos.

Mesmo que, de repente, sobre o muro
Surja a sanhuda face
Dum guerreiro invasor, e breve deva
Em sangue ali cair
O jogador solene de xadrez,
O momento antes desse
(É ainda dado ao cálculo dum lance
Pra a efeito horas depois)
É ainda entregue ao jogo predileto
Dos grandes indif'rentes.

Caiam cidades, sofram povos, cesse
A liberdade e a vida.
Os haveres tranqüilos e avitos
Ardem e que se arranquem,
Mas quando a guerra os jogos interrompa,
Esteja o rei sem xeque,
E o de marfim peão mais avançado
Pronto a comprar a torre.

Meus irmãos em amarmos Epicuro
E o entendermos mais
De acordo com nós-próprios que com ele,
Aprendamos na história
Dos calmos jogadores de xadrez
Como passar a vida.

Tudo o que é sério pouco nos importe,
O grave pouco pese,
O natural impulso dos instintos
Que ceda ao inútil gozo
(Sob a sombra tranqüila do arvoredo)
De jogar um bom jogo.

O que levamos desta vida inútil
Tanto vale se é
A glória, a fama, o amor, a ciência, a vida,
Como se fosse apenas
A memória de um jogo bem jogado
E uma partida ganha
A um jogador melhor.

A glória pesa como um fardo rico,
A fama como a febre,
O amor cansa, porque é a sério e busca,
A ciência nunca encontra,
E a vida passa e dói porque o conhece...
O jogo do xadrez
Prende a alma toda, mas, perdido, pouco
Pesa, pois não é nada.

Ah! sob as sombras que sem qu'rer nos amam,
Com um púcaro de vinho
Ao lado, e atentos só à inútil faina
Do jogo do xadrez
Mesmo que o jogo seja apenas sonho
E não haja parceiro,
Imitemos os persas desta história,
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.

Ricardo Reis, in "Odes"

sexta-feira, 25 de maio de 2012

DISPONÍVEL PARA ENCABEÇAR UMA MANIF


Transeunte chamando óóóó-psstttt! uma manifestação, a qual se dispõe a encabeçar.

Não sei se é a manif que o meu partido promove amanhã.
Não sei se o transeunte é o Tó-Zé Seguro porque apesar do Tó-Zé estar disponível para encabeçar manifestações eu nunca vi o Tó-Zé em calções.

A PROPÓSITO DE SOFÁS - 4/7

Continua a saga dos sofás, dedicada ao meu amigo Humberto, que estabelece uma ligação, algo exagerada, entre sofás e funcionários públicos.

 

 Femme nue, femme noire
Vétue de ta couleur qui est vie,
de ta forme qui est beauté
J'ai grandi à ton ombre;
la douceur de tes mains bandait mes yeux
Et voilà qu'au coeur de l'Eté et de Midi,
Je te découvre, Terre promise,
du haut d'un haut col calciné
Et ta beauté me foudroie en plein coeur,
comme l'éclair d'un aigle

Femme nue, femme obscure
Fruit mûr à la chair ferme,
sombres extases du vin noir, bouche qui fais
lyrique ma bouche
Savane aux horizons purs,
savane qui frémis aux caresses ferventes du Vent d'Est
Tamtam sculpté,
tamtam tendu qui gronde sous les doigts du vainqueur
Ta voix grave de contralto est le chant spirituel de l'Aimée

Femme noire, femme obscure
Huile que ne ride nul souffle,
huile calme aux flancs de l'athlète, aux
flancs des princes du Mali
Gazelle aux attaches célestes,
les perles sont étoiles sur la nuit de ta peau.
Délices des jeux de l'Esprit,
les reflets de l'or ronge ta peau qui se moire
A l'ombre de ta chevelure,
s'éclaire mon angoisse aux soleils prochains
de tes yeux.

Femme nue, femme noire
Je chante ta beauté qui passe,
forme que je fixe dans l'Eternel
Avant que le destin jaloux
ne te réduise en cendres pour nourrir les
racines de la vie.


Três grandes nomes: Seydou Keita, Mickalene Thomas e Léopold Senghor. As femmes são noires mas não estão assim muito nues. Pouco importa, as imagens e as palavras são um hino à beleza.

Hoje é Dia de África.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

DE BOUDRY A HAVANA

Quando tinha 11 anos fotografei uma amiga em cima de uma rocha, na praia da Balaia. A pose fazia-me lembrar a estátua da sereia, existente em Copenhaga e destinada a homenagear Hans Christian Andersen. A fotografia ainda existe, no meio dos souvenirs dessa amiga.

Ficou-me dessa altura o gosto pelos jogos de imagens e pela (re)utilização de fontes de inspiração. O que faço correntemente, mesmo do ponto de vista profissional. A arte ocidental tem um grande número de pinturas, e são sobretudo as pinturas, que são depois usadas como ponto de partida para novas criações. De memória e para dar alguns exemplos: a L'ultima cena, de Leonardo, a Olympia ou o Le déjeuner sur l'herbe, de Manet, Las meninas, de Velázquez, La Liberté guidant le peuple, de Delacroix e este La mort de Marat, de Jacques-Louis David. Acho particularmente interessante, no caso deste último, a provocadora releitura proposta pelo fotógrafo cubano René Peña (n. 1957).

quarta-feira, 23 de maio de 2012

O 112 E A ECONOMIA SOVIÉTICA

O episódio tem uns 15 anos e ocorreu durante um jantar de apresentação do candidato da CDU, algures no Alentejo. A meio do jantar faltou o pão. O candidato, homem expedito, puxou de lado o outro candidato, o da Assembleia Municipal, e decidiu: "temos de resolver isto". E foram arranjar pão, fora de horas. A tarefa foi coroada de sucesso, no meio de algumas peripécias. A páginas tantas, comentou o bem-humorado candidato para o seu colega e amigo: "a economia soviética é isto; está tudo organizado, mas depois não há comida".

A que propósito vem esta historieta? É que o 112 é um pouco assim. Sobra em organização ao sistema o que lhe falta em eficácia. Um homem caiu hoje, numa rua de Mértola. Um jovem que vai a passar liga para o 112 e relata o sucedido. Os minutos passam. Chega uma moradora, que liga para o comandante dos bombeiros. O qual informa desconhecer a situação, porque não chegara nenhuma indicação nesse sentido. Passam uns bons 20 minutos entre o acidente e a chegada do carro do INEM (o local onde este tem a base dista uns 300 metros do local da ocorrência). Todas as comunicações tinham sido estabelecidas e todas as autorizações dadas. Podemos morrer, mas ao menos morremos organizadamente.

Para que não fiquem dúvidas: não são o esforço, dedicação e competência dos Bombeiros que estão em causa. Do resto (burocracia, sistemas de comunicação etc.) não vale a pena falar. Com exemplos destes, está tudo dito.

  
Um 112 a todo o vapor

MOURA NO MUNDOTORO

Ao consultar, durante a hora do almoço, o site mundotoro tive a grata surpresa de encontrar lá uma referência a Moura. É que o nosso Município declarou, no passado dia 2 de maio, a tauromaquia como Património Cultural Imaterial (v. aqui).

Agora é a vez da bonita cidade de Antequera. Estamos em boa companhia.

O site tem sempre notícias de interesse e informações atualizadas: www.mundotoro.com

CLARISSA

Amenizemos, então, o ambiente do blogue com este excerto de um livro amado:

"No pátio, Clarissa senta-se nas bordas do tanque e começa a riscar com o dedo a superfície da água azulada. Escreve nomes. Clarissa, titia, Tonico, Dudu. Mas o brinquedo logo a enfastia. Com um tapa corta a água, que se encrespa em ondas minúsculas. Clarissa põe-se a rir: tem a impressão de que o céu dança, as nuvens dançam, a luz dança na água agitada...
De súbito começa a gritar e a correr, pondo em pânico as galinhas. Cacarejando, a bicharia foge, num bater de asas.
Cansada, Clarissa pára ofegante, deita-se no chão, de costas, à sombra de um pessegueiro. Como está morna a terra, e como é áspera e dura... Espreguiça-se. Tem as faces avermelhadas. Sorri ainda. Os seus seios se agitam. Fica olhando, muito atenta para as formigas que vão e vêm em duas filas, longas, cada qual a carregar o seu fardo.
Será que as formigas têm língua como a gente? Oh! Claro que têm. Clarissa observa... De quando em quando duas formiguinhas - uma que vem, outra que vai - param, aproximam-se e ficam quietas por um instante uma na frente da outra. Que será que estão fazendo? Naturalmente conversando. E que dirão?
"Boa tarde, comadre."
"Boa tarde. Tem trabalhado muito?"
"Tenho. Veja só o que vou carregando nas costas."
"Oh! A senhora é muito forte..."
"Como vai a família?"
Quanta coisa se podem dizer as formigas...
 

Um dos meus livros de Português do Ciclo Preparatório (ou seria o da 4º classe?) tinha excertos de Clarissa, escrito em 1933 por Érico Veríssimo (1905-1975). Quando o ano letivo terminou, fui direito à biblioteca para ler o livro todo. Apaixonei-me por Clarissa. Até hoje, não encontrei ninguém que não me tenha dito ter sido um dos livros mais importantes da sua juventude.

O escritor daria o nome de Clarissa à sua filha, nascida em 1935. E esta coisa do talento é hereditária: Luís Fernando está aí para o provar.

O bucolismo de Clarissa tem ligação direta com o da pintura de Harold Harvey (1874-1941), que integrou o grupo de Newlyn. O quadro intitula-se Children swinging on a gate.

terça-feira, 22 de maio de 2012

INFERNO


Mangez
Les cailloux qu'un pauvre brise,
Les vieilles pierres d'église,
Les galets, fils des déluges,
Pains couchés aux vallées grises !


Esta fotografia, já antiga (1993), de James Nachtwey, é das mais violentas e incompreensíveis que jamais vi. Que papel é aquele que o homem a morrer à fome, durante uma das cíclicas secas no Sudão, recebe ou entrega? Que papel, Deus meu? E para quê?

As palavras do poema de Rimbaud têm um contexto diferente, mas a sua sonoridade parece-me ter a ver com aquele momento. Inferno é o título de um livro de Nachtwey. Uma denúncia da primeira à última página. Ainda há exemplares à venda na Amazon (102 dólares).

segunda-feira, 21 de maio de 2012

UM PAÍS DE POETAS

Numa cena do filme Malteses, Burgueses e às Vezes..., de Artur Semedo, um personagem sai de um autocarro, em Lisboa. Em frente à paragem está uma papeleira, com um poema impresso. O homem lê o poema e exclama "isto é mesmo um país de poetas...". Lembrei-me disto ao entrar no outro dia em casa e ao deparar com um grupo de miúdos a jogar às cartas. Cada carta do baralho tinha um aforismo diferente. Somos um país de poetas? Somos pois. Quer dizer, seremos todos menos eu.

Aqui vai mais uma carta para o baralho. Com um poema de José Tolentino, muito bom, que mão anónima me fez chegar hoje de manhã. 
 

O fio de um cabelo
Abandono a casa o horto o lugar à mesa
o casaco de que gostava, sobre o leito dobrado
esta verdade quase banal
que toda a vida fui

Não abro a porta quando batem
(às vezes batiam só por engano)
não avalio o balanço das certezas
o que separa uma forma da outra
sempre me escapou

Ontem começava a clarear
o ar frio que vinha dos campos
julguei-o de passagem e afinal
era um segredo que meu corpo
de uma vez por todas contava
ao meu corpo

Mas quando tombei sobre a terra
perdido como o fio de um cabelo
(aqueles que primeiro caem
da cabeça de um rapaz
e por não serem notados
são mais perdidos ainda)
estavas junto de mim

Lançaste ao fogo cidades
afogaste os exércitos
no vermelho mar da sua ira
hipotecaste terras tão preciosas
para estares junto de mim


José Tolentino Mendonça
De igual para igual






































domingo, 20 de maio de 2012

VIRGEM SUTA


O dia teve o seu quê de vertiginoso, com passagens por Castro Verde, Lisboa, Montijo e Amendoeira da Serra. O dia, ainda por cima, não correu nada bem. Em todo o caso, resolvi rematá-lo à uma da manhã de hoje, na 25ª hora, com um concerto dos Virgem Suta, no cais do Guadiana, em Mértola.

Os Virgem Suta são um caso raro de popularidade entre os mais novos. E não creio que isso seja pelo facto de serem da região (a banda é de Beja). Jorge Benvinda sabe puxar pelo público, como ontem voltou a mostrar. Às tantas, resolveu desafiar para o palco jovens que estavam no público. O espetáculo acabou em ambiente de total maluquice, conforme as imagens tentam mostrar, com um som pop, à mistura com laivos de marchas populares e de ska.

No meio do improvisado coro-corpo de baile descobri um jovem amigo, a quem desconhecia esta vocação para o music-hall.

O iphone proporciona boas imagens. Mas não em todas as mãos...

NATUREZA MORTA Nº 7

Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre —
Esse rio sem fim.

 

Todos nós já andámos assim, entre o sono e o sonho, como no poema de Fernando Pessoa. A única coisa que me escapa é o título deste quadro do simbolista Odilon Redon (1840-1916): Natureza morta - sonho. Podem os sonhos estar mortos? Ou estarão, quando muito, entre o sono e o sonho?

sexta-feira, 18 de maio de 2012

ESTÁ A CHEGAR O VERÃO

Está a chegar o verão e estão a chegar os turistas do norte da Europa. Em Mértola cruzei-me ontem com um nutrido grupo teutão, vestido disparatadamente. Duas coisas os "denunciam": usarem meias com as sandálias calçadas (um must que devia ser declarado Património da Humanidade) e pedirem Mateus Rosé, julgando que estão a beber um grande vinho.

Welcome, willkommen, bienvenus etc.

 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

O DR. MÁRIO SOARES E O POVINHO

Mário Soares em entrevista ao Expresso (5.5.2012):
O povinho que eu tenho frequentado percebeu tudo. Os comentadores são uma coisa, o Povo é outra.

Escreveu Henrique Raposo (Expresso de 12.5.2012):
(...) como é que se frequenta o "povinho"? O "povinho" é um restaurante?

Escreveu José António Saraiva em Confissões de um Director de Jornal (2003):
[Mário Soares] ama o povo teoricamente.

É o mesmo homem que gritava, enquanto PR, a um guarda que, coitado, cumpria o seu dever "ó homem, desapareça!". É o mesmo homem que, ao ser multado, disse que seria o Estado a pagar.

Há quem seja servidor do Estado. Há quem, em nome do povo (ou do povinho, tanto faz), se sirva do Estado.

 

LA NUBE

Mais uma evocação cinéfila: La nube, de 1998, da autoria do argentino Fernando Solanas (n. 1936).

Um filme sobre os sonhos, sobre a capacidade de luta (um grupo de atores em defesa do seu teatro), sobre a paixão de querer fazer coisas. Vi La nube, na RTP2, há já uns bons anos. Solanas cria um artifício divertido para identificar, no filme, os que amam o progresso, os princípios e o Teatro e os outros: os primeiros avançam, os outros deslocam-se às arrecuas. Na altura, achei a ideia divertida, ainda que um tanto disparatada, com aquele "bailado" que se prolonga por todo o filme.

O correr do tempo fez-me ter a certeza que uns avançam para a frente, passe o pleonasmo, outros fazem os possíveis por travar tudo e andam para trás. É assim na vida, estejamos nós a falar das associações, dos clubes, das empresas, das faculdades, das câmaras municipais...

Posso garantir uma coisa. O filme é muito melhor do que o clip deixa entender.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

REGENERAÇÃO URBANA: REDES DE ÁGUAS E ESGOTOS

Ainda Moura. Para recordar um tema, cuja importância tenho como decisiva.

A Câmara Municipal de Moura definiu esta área como prioritária. E tem agido em conformidade. Os níveis de eficiência na distribuição de água na sede do concelho têm sido significativamente aumentados.

Calou-se agora o clamor dos engenheiros-de-vão-de-escada e dos especialistas-em-obras-públicas-da-blogosfera. Deixaram em paz, final e felizmente, os técnicos do Município responsáveis pela fiscalização...

Esta fase de obras está terminada. Outras intervenções se aproximam da conclusão. Com bastante esforço e com cortes financeiros pesados. Mas sem hesitações e olhando em frente.

Alguns números:
Investimento das duas fases até agora concretizadas: 3.287.500 €
Metros de tubagens e condutas renovadas: 26.254
Vias abrangidas pela 2ª fase: 35
A saber:

Estrada da Circunvalação (parcial)
Estrada dos Celeiros
Largo de S. Francisco
Largo de Santa Clara
Largo José Maria dos Santos
Loteamento da Rua das Terçarias (parcial)
Loteamento dos Quartéis
Praça Gago Coutinho
Rua 1 de Fevereiro
Rua 5 de Outubro
Rua 9 de Abril
Rua da Boavista
Rua da Caridade
Rua da Carneira
Rua da Esperança
Rua da Fé
Rua da Parreira
Rua da Porta Nova
Rua da Vitória
Rua das Forças Armadas
Rua de S. João de Deus
Rua de S. Lourenço
Rua de S. Pedro
Rua do Amparo
Rua do Campo da Bola
Rua do Escalatrim
Rua do Saco de Santa Clara
Rua do Telheiro
Rua dos Açores (parcial)
Rua dos Espingardeiros
Rua Nova da Estação
Ruinha do Terço
Trav. Martim Carrasco
Zona em frente ao cemitério



Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.
Basta a fé no que temos,
basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria
ao que desconhecemos
e ao que é do dia-a-dia.
Chegamos? Não chegamos?
─ Partimos. Vamos. Somos.
(Sebastião da Gama)

terça-feira, 15 de maio de 2012

JÁ MIGUEL DE VASCONCELOS ERA DA MESMA OPINIÃO

Segundo a Renascença, o primeiro-ministro reafirmou que o desemprego é uma chaga social, mas é também uma oportunidade (v. aqui). Já Pita Ameixa (PS) tinha dito, em tempos, a mesma coisa quanto aos trabalhadores da Contenda, para quem se abriria uma janela de oportunidades ante a perspetiva de irem para o desemprego (v. aqui).

Desde Miguel de Vasconcelos (1590-1640) que o tema da janela parece obcecar alguns políticos portugueses.

GOLPE DE ESTADO EM PORTUGAL

Hoje, 25 de abril, é aquele dia que a direita detesta. Detesta mesmo, por mais que tente disfarçar. E nos dias que correm já nem se esforça muito a disfarçar…

Hoje não há tanques nas ruas. A rádio não foi tomada de assalto nem há comunicados de tom marcial. Contudo, o golpe de estado está em marcha. Os manifestantes não tomaram as ruas de assalto nem se ouve o rumor da turba. O aeroporto não foi encerrado. Ainda assim, o golpe de estado está em marcha. A política foi tomada de assalto pelos financeiros e pelos “mercados”, nome que hoje se dá à especulação mais desenfreada e à agiotagem mais descarada. Como uma doença fatal, o golpe de estado em curso foi-se instalando, corroendo a esperança e minando a capacidade de luta.

Um golpe de estado não precisa de seguir o modelo “africano” do 25 de abril – toma-se a rádio, o aeroporto e cerca-se o palácio presidencial, que conquistada a capital tudo o mais ruirá -, bastando-lhe, hoje, entrar no mundo obscuro da administração e das leis. O golpe de estado está, portanto, em marcha.

É uma vingança a frio e depois de décadas à espera. À boleia da crise, da “troika” e dos “mercados” (ó meus deuses, outra vez os “mercados”…) desmantela-se o que resta do 25 de abril. Com o aconselhamento de “cientistas políticos”, com a complacência de venais autarcas da área do poder, com o voto e o apoio de deputados carreiristas e sem coluna vertebral.

Conselheiros de vária índole entretêm-se a espatifar o Poder Local. E digam o que disserem os “comentadores” e os “especialistas” o País que somos e o progresso que tivémos muitíssimo deve ao Poder Local. No vasto rol de medidas do secreto golpe de estado entram as leis de estrangulamento financeiro e de controle policial, os executivos monocolores, a diminuição dos lugares de vereadores, de quadros dirigentes, a extinção de juntas de freguesia. É por causa da “despesa”. Decerto. Compreende-se. Alguém tem de pagar os 5 mil milhões de euros que os amigos do Presidente Cavaco Silva estoiraram no BPN (e que correspondem a dois anos de orçamento para todas as câmaras do País)…

“A política passou a ser uma tecnologia, uma moral, uma engenharia eleitoral”, afirmou hoje na Assembleia da República o deputado Agostinho Lopes (PCP). Nessa engenharia entram em jogo as novas leis, afinal um ajuste de contas que transformará as câmaras municipais em meras repartições da vontade do Poder Central. Muita gente, incluindo muitos autarcas de direita gostará disso, de ver as autarquias reduzidas a um caráter assistencial, a entidades apoiantes da caridadezinha e à execução de tarefas rotineiras.

Há meses, alguém da área do Poder, antigo colega do liceu, dizia-me “vou a Moura quando fores nomeado Presidente da Câmara”. Fiz-lhe notar o curioso lapso e respondi “isso queriam vocês, que os presidentes fossem nomeados pelo governo, como antes do 25 de abril”. A batalha seguinte é, portanto, essa: não só impedir que leis imbecis avancem, como contribuir para que o Poder Local se afirme e consolide.

Uma pergunta, se me permitem: onde é que raio anda o Partido Socialista nestas alturas?

Mértola, 25 de abril de 2012

Crónica escrita no dia 25 de abril e publicada em "A Planície" de dia 1 de maio



Algumas semanas depois deste texto ter saído li declarações de Vital Moreira, propondo a redução do número de eleitos nas assembleias municipais, o reforço de poderes deste orgão (fórmula encontrada para mascarar a carnavalada dos executivos monocolores) e, tremei!, a possibilidade das assembleias instaurarem inquéritos. Vital é dos que acham que a vida está dentro de compêndios de Direito e dentro das normas e da legislação. Também está, mas vai muito além disso. Pensar que se resolvem problemas com normas e comissões de inquérito daria vontade de rir se não fosse trágico.