quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A CASA DE VERMEER

O meu amigo João Feliciano diz que recorro, com muita frequência, à memória neste blogue. É verdade. Recordações ou fragmentos de coisas passadas são evocados, como quem percorre uma velha estrada romana.


Várias conversas tidas nos últimos dias a propósito de um projeto com 22 anos (o da musealização da torre de menagem do castelo de Moura) fizeram-me recuar à primavera de 1989. Quando o Mariano Piçarra se instalou em Moura para tomar as primeiras medidas e lançar as primeiras ideias para uma obra que só agora está em curso. Numa das noites em que andávamos por aí à deriva fomos visitar o antigo quartel dos bombeiros, onde seria mais tarde instalado o Museu Gordillo. O Mariano ficou perfeitamente fascinado com os mosaicos hidráulicos brancos e pretos do pavimento. Por causa de Vermeer. Na casa de banho do edifício uma velha banheira em pedra compunha o cenário. O Mariano fez algumas fotografias daquele compartimento. Curiosamente, acho que nunca as ampliou nem pensou em expô-las.


Naquela casa, antes de ser quartel de bombeiros e muito antes de ser museu, viveram pessoas. Que não imaginavam que um dia, daí a muitos anos, alguém entraria no local onde se banhavam para tirar fotografias, por causa de uns mosaicos que evocavam Vermeer. A memória, João? É fundamental.


Oh as casas as casas as casas

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas


O poema é de Ruy Belo. O quadro, Carta de Amor, foi pintado por Johannes Vermeer (1632-1675) por volta de 1669. Está hoje em exposição no Rijksmuseum, em Amesterdão.

Ver: http://www.essentialvermeer.com/

4 comentários:

Anónimo disse...

Por causa deste post e de Vermeer, que eu confundia há uns anos atrás com De Chirico e com Magritte – hoje já sei porquê mas não vem ao caso – confirma-se que as memórias, tal como as conversas, são como as cerejas. Há dias ouvi o cineasta João Canijo numa entrevista a propósito do filme Sangue do Meu Sangue. Dizia o João, justificando a técnica de filmar vários planos no mesmo take, que a realidade aparece aos nossos olhos em vários planos e que depois escolhemos o que nos interessa. Porém, independentemente da nossa escolha, as coisas não deixam de estar e de ser. Nos excertos do filme que já vi a técnica é visível e eficaz.
Dizia ainda que já John Cassavetes fizera isso – A Morte de um Apostador Chinês. E que El Greco ou Velásquez - um deles – utilizou a mesma técnica na pintura. Esqueci-me a qual deles o João Canijo se referiu. Mas se calhar foi a Velasquez e às Meninas: o que faz aquele intrigante personagem entre portas, em último plano? Cada vez que observo o quadro, o meu olhar dirige-se invariavelmente para ele.
Ao Mariano Piçarra foi com os mosaicos brancos e pretos, tão fortemente evocativos dos mosaicos “em primeiro plano” da Carta de Amor de Vermeer. Ao Santiago foi com a memória duma noite em que derivaram para o antigo quartel dos bombeiros à procura de ideias.
Agora por causa das conversas e das memórias lembrei-me d’O Cerejal de Anton Tchekhov. Ah, e vou decorar este poema subversivo do Ruy Belo. Haja memórias, esperança e boa disposição.
Abraço
JCLinda

babao disse...

É tudo uma questao de baldosas !

Este post foi sponsorizado p'la PORCELANOSA : ))

Santiago Macias disse...

Très amusante, babao...

babao disse...

N'est-ce pas !?

Boa semana e muitos miaos p'ra ti ; )