quinta-feira, 26 de novembro de 2009

ARGEL VII - OS DIAS E AS MIRAGENS (3ª parte)

Conclusão de
http://avenidadasaluquia34.blogspot.com/2009/11/argel-ii-os-dias-e-as-miragens-1-parte.html (9.11.2009)
e
http://avenidadasaluquia34.blogspot.com/2009/11/argel-iv-os-dias-e-as-miragens-2-parte.html (15.11.2009)

A que cidade vim eu parar, repito-me dias mais tarde. Não o chegarei a saber, apesar da relativa tranquilidade que ali se respira. O ambiente é de acalmia, depois de anos de terror. Isso vai-nos permitir uma visita à fantástica cidade romana de Tipasa, 60 quilómetros a ocidente de Argel, e um jantar na aldeia piscatória de La Madrague. O regresso tardio à cidade há-de fazer-se por uma estrada deserta e espectral, num percurso impossível de cumprir pouco tempo antes.
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É verdade que na noite de Argel também quase não há movimento nas ruas e que são escassos os restaurantes e ainda mais raras as discotecas dos hotéis, caras e de ambiente pouco recomendável. É verdade que há bairros onde se pode circular a pé e outros onde ainda não se pode fazê-lo. Mesmo no território das embaixadas, em El Biar, a imagem de dois estrangeiros a pé provocará olhares de algum espanto. Os ocidentais deixaram o país depois de uma série de atentados; mantém-se apenas os diplomatas, acantonados em refúgios protegidos e vivendo uma existência à margem do quotidiano.
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Respira-se hoje um pouco melhor e fala-se menos nas falsas barreiras policiais que, mesmo na capital, apanhavam e eliminavam à toa alvos escolhidos ou quem calhasse. As barreiras, as verdadeiras, ainda estão por toda a parte, armadas e tensas. Nesse sentido pode dizer-se que Argel é uma cidade segura. Há, em muitos sítios, detectores de metais e aparelhos de raios-X por onde temos de passar e mais seguranças e mais polícias. Por isso, quando um ansioso jornalista me pergunta, numa entrevista para um canal de rádio francófono se vejo Argel como uma cidade segura respondo que sim, sem ter a certeza de estar a mentir ou a dizer a verdade.
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Antes da partida hei-de olhar muitas vezes, entre o desconsolo e a resignação, para o mapa da costa da Argélia. De ocidente para oriente alinham-se, de um fôlego, Tlemcen, Cherchell, Tipasa, El Asnam, Annaba, Sétif. Com apenas uma excepção, não chegarei a ver estas cidades, outrora entrepostos comerciais elogiados e invejados, cheios de gente de todo o Mediterrâneo. Todos eles são hoje apenas uma glória do passado, com o que resta dos anfiteatros, dos banhos e das praças. E sobretudo, e uma vez mais, com o que ficou da memória dos mártires, das basílicas e das imensas necrópoles que encontramos fora de portas.
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De Argel a Barcelona vão mais do que os 600 quilómetros que as separam. Vão muito mais que os 50 minutos de voo que haveremos de vencer num avião sem lugares marcados. Saímos de Argel com tempo encoberto e chegamos a Barcelona com as mesmas nuvens e o mesmo ar pesado. A paisagem é também semelhante e poderíamos pensar que não tinhamos saído do mesmo sítio.
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Quase tudo muda, porém, naquele pequeno salto. Ao ambiente enervado do aeroporto Boumediene - são quinze os controlos a transpor atá se entrar no avião - sucede-se a descontracção cosmopolita de Barcelona. 50 minutos separam o barzinho decrépito, onde beberemos um último chá de menta, das sofisticadas lojas de salmão fumado e de charutos caros. É para essa miragem que espreitam todos os dias os que se alinham às portas das embaixadas ocidentais em Argel os que esperam o milagre de um visto que lhes permita fugir ao desemprego e à violência de todos os dias e ter acesso ao paraíso dos ricos. A juntar ao azul do céu e a uma paz que ninguém sabe quando chegará, é essa a terceira e definitiva miragem daquela terra do Magrebe.
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PS: Já depois de escrita esta crónica leio na imprensa a notícia de mais dois massacres na pacífica Tipasa. Num dos casos o alvo foram turistas argelinos. Não acredito que haja grandes motivações políticas ou religiosas para o que aconteceu. A miséria, a fome, a raiva, o desespero, o desejo de uma qualquer vingança e, sobretudo, a garantia da impunidade são razões mais que suficiente para as tragédias que todos os dias se repetem naquelas paragens.

Texto publicado no Diário do Alentejo em 28.7.2000 e reeditado em A quinta coluna, ed. DA, 2001
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Desenho da Argel otomana (século XVI), com a qasbah ao centro.

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