segunda-feira, 30 de novembro de 2009

A ESCRITA LUMINOSA DE MASSOUDY

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Lancemos cor, nestes momentos de intolerância, sobre o quotidiano. Hassan Massoudy é um calígrafo iraquiano, nascido em Najaf em 1944. A sua recriação da escrita árabe deu-lhe uma justificada reputação mundial.

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Não tenho disso a certeza, mas aposto que Massoudy conhece a poesia de Ibn Ammar (século XI) e subscreve estes belos versos:

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a minha pupila resgata o que está preso na página:

o branco ao branco, o negro ao negro.

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MINARETES APAGADOS

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O Prof. Cunha Serra insistia que disséssemos sempre "alminar" e não "minarete", que é um galicismo. A palavra vem do árabe manara, com o significado de farol. É dali que é feito o chamamento à oração.
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Ontem, os suiços decidiram, em referendo, proibir os minaretes. A coisa mete alterações à Constituição. E vai ser pretexto para mais uma longa polémica.
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A extrema-direita é especialista em apagar fogos com gasolina. Infelizmente, a estupidez e a intolerância não são passíveis de alteração via referendo.
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Diga-se, já agora, que o que acima se escreve é totalmente válido, mutatis mutandis, para as monarquias do Golfo que se divertem a reprimir o catolicismo.

domingo, 29 de novembro de 2009

ARGEL VIII - LA TAVERNE DU LAC

Cidade de contrastes e de contradições, em Argel podemos ver, na mesma rua, a poucos metros de distância, bares onde não há bebidas alcoólicas e cervejarias onde quase não há outra coisa para beber. Por vezes, os "barbudos", como depreciativamente lhe chamam aqueles que são ferozmente laicos, exercem pressão e chantageiam os proprietários. As cervejarias resistem, porém. Não são locais secretos nem de bas-fonds. A clientela é masculina e ruidosa. Foi assim, entre muitas cervejas e muito peixe frito, que conheci a Taverne du Lac. O nome é bizarro, porque o único lago é o da cerveja que corre em abundância. Senti-me ali tão em casa como em tantas tabernas e bares que conheço pelo Alentejo dentro. A conversa com o Boussad foi muito longa e foi aí, como tantas vezes acontece nas nossas vidas, que a palavra amizade ganhou um pouco mais de forma.
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Amanhã de manhã telefonarei ao Boussad para saber se a Taverne du Lac existe e continua de boa saúde. E se os fascistas da incultura já lhe deram cabo da livraria.
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COMEÇA A CIMEIRA IBERO-AMERICANA

Começa a cimeira. Para além das chachadas do costume e da falta de alguns VIP, o verdadeiro momento do dia foi a declaração de José Sócrates, para o qual o blogue de Amílcar Mourão me alertou. Ou seja, e cito do site da TSF:
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O primeiro-ministro lamentou que os portugueses andem tão distraídos com as questões ligadas à inovação e conhecimento, que vão marcar a XIX Cimeira Ibero-americana, que começa este domingo, com um acto inaugural nos Jardins da Torre de Belém.
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Gosto sempre de ouvir José Sócrates falar de cátedra sobre inovação e conhecimento. Sobretudo quando temos de ter em conta o seu sólido, prestigiado e coerente passado académico...
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FIM-DE-SEMANA IV: CHE

Foi no sábado ao fim da tarde, na estação dos combóios da Amadora. Um jovem estava sentado em frente a um daqueles postos informativos individuais que existem agora por toda a parte. Quando passei por ele não resisti a voltar a cabeça para trás. É feio, já se sabe, mas a fixação do jovem causou-me estranheza. Estava a ler, com rara concentração a biografia do Che, numa página da wikipédia. São estes pequenos detalhes que me dão esperança.
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FIM-DE-SEMANA III: PEDRO MEXIA

O poeta e dramaturgo Pedro Mexia deu uma entrevista ao Expresso. O que diz é tão interessante e acutilante como o que escreve nas suas crónicas. Mas, a páginas tantas, lê-se:
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Na minha experiência [a camaradagem é uma coisa exclusiva da amizade masculina]. Numa relação com uma mulher, num momento qualquer, passou aquela sombra sexual. Sempre.
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Não é assim e Pedro Mexia fez muito bem em relativizar. Tenho exemplos pessoais do que digo. Não muitos, mas tenho.
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FIM-DE-SEMANA II: TETRO

Está provado que Francis Ford Coppola não sabe fazer maus filmes. Mas este Tetro não é o relançamento da sua carreira. Muito longe disso. A ideia que está na base da história é um achado, mas depois o argumento perde-se em meandros sem interesse. Vale a pena vê-lo, porque está magnificamente fotografado e porque tem o tom trágico e operático de todos os filmes de Coppola. E porque se fica com vontade de conhecer La Boca, em Buenos Aires.
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FIM-DE-SEMANA I: OS BAZARISTAS

Não sendo fanático de centros comerciais, reparei hoje que o Colombo está transformado num labirinto de bancas ambulantes (rentabilizar, é preciso!), que atravancam os corredores e tornam as compras num pesadelo. Acreditem que até o bazar de Marrakech tem mais lógica.
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sábado, 28 de novembro de 2009

PORTFOLIO ERÓTICO

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Ao consultar hoje de manhã o SOL online reparei num portfolio fotográfico sobre o V Salão Erótico de Lisboa, recentemente realizado.
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A admito que a falha seja minha, mas nunca percebi o que é que "isto" tem de erótico...

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

SCAPRICCIATIELLO


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Não sendo hábito meu multiplicar as referências a filmes, lembrei-me deste excerto de Wild is the wind, rodado em 1957 sob a direcção de George Cukor (1899-1983). Nunca vi o filme, mas agora tenho vontade o ver. Sobretudo depois desta interpretação de Scapricciatiello, por Anna Magnani. Dolores Duran também gravou o mesmo tema, imitando na perfeição o dialecto napolitano. Cantava melhor que Anna Magnani, claro, mas sem o mesmo sentimento.

MAIS OLYMPIA

No passado mês de Fevereiro entretive-me a encontrar variações ao quadro Olympia, de Manet. Havia de tudo um pouco, no que são, sobretudo, homenagens à genialidade do pintor francês.
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Ontem à noite, já não sei a que propósito, "caiu-me nos braços" mais esta Olympia, do escultor Larry Rivers (1923-2002), que inverteu um pouco a história com este I like Olympia in black face (1970).

TEATRO DEL DRAGO

Deixei-me arrastar, sem demasiada convicção, para o cine-teatro de Mértola. Ainda bem, porque o espectáculo foi extraordinário. Uma pequena peça de marionetas, pelo Teatro del Drago, de Ravenna, intitulada O sequestro do príncipe Charles. Durante cerca de 45 minutos seguimos as peripécias de Fagiolino, Balanzone e de todos os outros. A peça era falada em italiano? E daí? Tinha trocadilhos nem sempre fáceis de seguir? E depois?

No final, Mauro Monticelli explicou que a família se ocupa daquela arte desde meados do século XIX. E que são os derradeiros de uma tradição que teima em não morrer.

Foi então que levantou o pano do teatro e nos mostrou que toda a peça era ele só, manipulando os burattini. Pudémos então dar-nos conta da ilusão. E se às vezes o levantar do véu da ilusão tira a magia das coisas, ali não foi esse o caso. Viva o TEATRO DEL DRAGO!



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Para saber mais:
Via Sant'Alberto 297
48100 Ravenna - IT

Telef. 00.39.3355342500
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O Teatro del Drago foi a Mértola no âmbito do projecto Oralidades, que engloba Arles (França), Birgu (Malta), Évora (Portugal), Idanha-a-Nova (Portugal) Mértola (Portugal), Ourense (Espanha), Ravenna (Itália) e Sliven (Bulgária), unidas num vasto programa de cooperação e intercâmbio cultural. Neste âmbito, será criado um Centro de Recursos da Tradição Oral, que ficará sedeado em Évora.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

ANTI-IMPERIALISTAS

São controversos e têm, por vezes, atitudes e declarações que desafiam o mais elementar bom-senso. Têm, contudo, uma enorme e salutar vantagem. Deixam o imperalismo norte-americano completamente HIS-TÉ-RI-CO.
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Saravá!

HERÓIS DO DIA

"Serão convidados da noiva? Devem ser do noivo...", "Serão convidados do noivo? Devem ser da noiva...". A situação era clássica nos casamentos de certas terras do Alentejo. E assim os penetras iam tirando partido da confusão.
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Na Casa Branca, mesmo sem serem alentejanos, o casal Salahi adesivou-se e chegou mesmo a fazer uma foto para a posteridade com o vice-presidente Biden.
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Saravá!
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LISBOA-ARGEL

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O ambiente descrito no texto que acabo de reeditar tem pouco a ver com a realidade actual, felizmente. Recordo que, na altura, a maior parte das companhias europeias não voava para Argel, por razões de segurança. Cheguei a ir a Frankfurt para apanhar um voo de ligação...
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A TAP vai passar a ter voos directos para Argel. O primeiro devia ter lugar hoje, conforme anunciado em tempos. O site da companhia, porém, mantém-se silencioso a este respeito.

ARGEL VII - OS DIAS E AS MIRAGENS (3ª parte)

Conclusão de
http://avenidadasaluquia34.blogspot.com/2009/11/argel-ii-os-dias-e-as-miragens-1-parte.html (9.11.2009)
e
http://avenidadasaluquia34.blogspot.com/2009/11/argel-iv-os-dias-e-as-miragens-2-parte.html (15.11.2009)

A que cidade vim eu parar, repito-me dias mais tarde. Não o chegarei a saber, apesar da relativa tranquilidade que ali se respira. O ambiente é de acalmia, depois de anos de terror. Isso vai-nos permitir uma visita à fantástica cidade romana de Tipasa, 60 quilómetros a ocidente de Argel, e um jantar na aldeia piscatória de La Madrague. O regresso tardio à cidade há-de fazer-se por uma estrada deserta e espectral, num percurso impossível de cumprir pouco tempo antes.
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É verdade que na noite de Argel também quase não há movimento nas ruas e que são escassos os restaurantes e ainda mais raras as discotecas dos hotéis, caras e de ambiente pouco recomendável. É verdade que há bairros onde se pode circular a pé e outros onde ainda não se pode fazê-lo. Mesmo no território das embaixadas, em El Biar, a imagem de dois estrangeiros a pé provocará olhares de algum espanto. Os ocidentais deixaram o país depois de uma série de atentados; mantém-se apenas os diplomatas, acantonados em refúgios protegidos e vivendo uma existência à margem do quotidiano.
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Respira-se hoje um pouco melhor e fala-se menos nas falsas barreiras policiais que, mesmo na capital, apanhavam e eliminavam à toa alvos escolhidos ou quem calhasse. As barreiras, as verdadeiras, ainda estão por toda a parte, armadas e tensas. Nesse sentido pode dizer-se que Argel é uma cidade segura. Há, em muitos sítios, detectores de metais e aparelhos de raios-X por onde temos de passar e mais seguranças e mais polícias. Por isso, quando um ansioso jornalista me pergunta, numa entrevista para um canal de rádio francófono se vejo Argel como uma cidade segura respondo que sim, sem ter a certeza de estar a mentir ou a dizer a verdade.
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Antes da partida hei-de olhar muitas vezes, entre o desconsolo e a resignação, para o mapa da costa da Argélia. De ocidente para oriente alinham-se, de um fôlego, Tlemcen, Cherchell, Tipasa, El Asnam, Annaba, Sétif. Com apenas uma excepção, não chegarei a ver estas cidades, outrora entrepostos comerciais elogiados e invejados, cheios de gente de todo o Mediterrâneo. Todos eles são hoje apenas uma glória do passado, com o que resta dos anfiteatros, dos banhos e das praças. E sobretudo, e uma vez mais, com o que ficou da memória dos mártires, das basílicas e das imensas necrópoles que encontramos fora de portas.
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De Argel a Barcelona vão mais do que os 600 quilómetros que as separam. Vão muito mais que os 50 minutos de voo que haveremos de vencer num avião sem lugares marcados. Saímos de Argel com tempo encoberto e chegamos a Barcelona com as mesmas nuvens e o mesmo ar pesado. A paisagem é também semelhante e poderíamos pensar que não tinhamos saído do mesmo sítio.
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Quase tudo muda, porém, naquele pequeno salto. Ao ambiente enervado do aeroporto Boumediene - são quinze os controlos a transpor atá se entrar no avião - sucede-se a descontracção cosmopolita de Barcelona. 50 minutos separam o barzinho decrépito, onde beberemos um último chá de menta, das sofisticadas lojas de salmão fumado e de charutos caros. É para essa miragem que espreitam todos os dias os que se alinham às portas das embaixadas ocidentais em Argel os que esperam o milagre de um visto que lhes permita fugir ao desemprego e à violência de todos os dias e ter acesso ao paraíso dos ricos. A juntar ao azul do céu e a uma paz que ninguém sabe quando chegará, é essa a terceira e definitiva miragem daquela terra do Magrebe.
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PS: Já depois de escrita esta crónica leio na imprensa a notícia de mais dois massacres na pacífica Tipasa. Num dos casos o alvo foram turistas argelinos. Não acredito que haja grandes motivações políticas ou religiosas para o que aconteceu. A miséria, a fome, a raiva, o desespero, o desejo de uma qualquer vingança e, sobretudo, a garantia da impunidade são razões mais que suficiente para as tragédias que todos os dias se repetem naquelas paragens.

Texto publicado no Diário do Alentejo em 28.7.2000 e reeditado em A quinta coluna, ed. DA, 2001
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Desenho da Argel otomana (século XVI), com a qasbah ao centro.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

FAUSTO GIACCONE

Faz hoje 34 anos que a festa da Revolução acabou. A catarse durara exactamente dezanove meses. A ressaca não tardaria.
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O sul de Portugal foi, durante esse ano e meio, terreno fértil para o trabalho de fotógrafos e cineastas. Nenhum me impressiona e comove tanto como a reportagem de Fausto Giaccone (n. 1943), nas terras do Couço, no final de Agosto de 1975.

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Fausto Giaccone voltou ao Couço em 1986. É a história da ocupação de uma herdade e do regresso do fotógrafo italiano ao Ribatejo que está contada no extraordinário livro Uma história portuguesa. A edição é de 1999. Presumo que esteja esgotadíssima.

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Vale a pena ver: http://www.faustogiaccone.com
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O tom épico da fotografia de cima e o vermelho da bandeira fez-me lembrar um poema de um autor medieval, que António Borges Coelho traduziu para o seu Portugal na Espanha Árabe.

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AS SEARAS

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Olha o vento semeado onde as searas parecem

ao inclinar-se ante o vento

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esquadrões de cavalaria que fogem derrotados

sangrando pelas feridas das papoilas.

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Iyad (séculos XI-XII) – trad. de António Borges Coelho

"ISTO NÃO VAI DAR NADA..."

A primeira página do Público de hoje parece dar razão à vox populi. E, traduz, em toda a sua dimensão, o significado da palavra JUSTIÇA no Portugal do século XXI.

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terça-feira, 24 de novembro de 2009

MARILYN CHAMBERS

Nunca eles pensaram. De certeza que não. A ideia não passou pela cabeça de Linda Lovelace (1949-2002). Nem de Gerard Damiano (1928-2008). Nem de Marilyn Chambers (1952-2009). São nomes de referência do cinema porno dos anos 70. Protagonizaram filmes como Garganta Funda, O diabo em Miss Jones ou Por detrás da porta verde.
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Antigamente, castos pais de família iam ver essas fitas ao Capitólio e ao Cinebolso. De óculos escuros, não fosse o diabo tecê-las e serem reconhecidos.
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Agora já não é preciso o secretismo. Oh, não! A Cinemateca Portuguesa (sim, essa mesma!) promove um ciclo sobre MARILYN CHAMBERS E O PORNO DOS ANOS 70. Onde os ditos filmes podem ser vistos ao longo desta semana. Se dentro da sala alguém vos/nos reconhecer não tenham/os problemas. Podem/os sempre dizer: "O quê? Mas não é um filme do Dziga Vertov que está programado para hoje???"
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Tudo isto e muito mais em http://www.cinemateca.pt
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LA HABANERA

Está tudo fora de tom. O filme passa-se, supostamente, em Porto Rico, mas foi rodado nas Ilhas Canárias, pouco antes do começo da 2ª Guerra Mundial. Todos os porto-riquenhos falam um alemão irrepreensível e a habanera (habanerrra, que é como eles dizem no filme) é originária de Cuba. Para além disso, repare-se no perfil nórdico da latina femme fatale do filme: alta, de pele branquíssima (tinha, na verdade, nacionalidade sueca), com mãos enormes e tranças à valquíria wagneriana.
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O filme é um melodrama mas o resultado desta cena é mais divertido que outra coisa.
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Em português o título era O veneno dos trópicos e vi-o na Cinemateca há mais, bem mais, de 25 anos. O realizador, Detlef Sierck (1900-1987), emigrou, pouco tempo depois deste filme ter sido concluído, para os Estados Unidos. Americanizou o nome para Douglas Sirk, tendo-se tornado um reputado, mas não muito considerado, director de filmes dramáticos. A sua obra tem vindo a ser reabilitada em tempos recentes. Voltarei a Douglas Sirk um dia destes.
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segunda-feira, 23 de novembro de 2009

PECADO ORIGINAL

A recordação da travessia aventurosa do Parque da Liberdade leva-me direitinho a um dos quadros da minha vida: La cacciata di Adamo ed Eva dal Paradiso Terrestre, de Masaccio (1401-1428). Confesso que gosto mais de ver a pintura "fora de contexto", que no seu local de origem, à entrada da capela Brancacci, onde a representação se perde por entre a magnificência do resto da Chiesa di Santa Maria del Carmine. Adão e Eva são expulsos e todo o drama do castigo se reflecte de forma exemplar na dor e na vergonha do momento. Espantosa é ainda a maturidade desta obra de Masaccio, que haveria de falecer prematuramente.
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O frescos estiveram, durante longos anos, envoltos nas ramagens do pudor. Podemos vê-los hoje em toda a sua magnificência.
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A pintura de Masaccio, antes e depois do restauro, outra forma de dizer pudor...

ARGEL VI - O PARQUE DE TODAS AS LIBERDADES

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Caía a noite em Argel quando resolvemos encurtar caminho, entrando pelo Parque da Liberdade. Dentro de momentos teria lugar mais uma reunião do projecto Discover Islamic Art. "Por aqui vamos mais depressa", dissera o Boussad. Segui atrás dele.
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Quando começámos a subir as alas, parque acima, não pude deixar de reparar nas raparigas de lenço branco que enchiam os bancos do parque. Um bando de devotas muçulmanas, de traje a rigor, gozando o fim de tarde. Não estavam sós, porém. Em cada banco, em cada canto do parque, cada rapariga, de lenço branco na cabeça e de longo traje da ortodoxia islâmica, tinha junto a si um rapaz. O parque era o sítio de todas as liberdades. Os lenços estavam já um pouco à banda, os beijos tinham o calor da liberdade, as mãos desapareciam por entre os trajes da ortodoxia. "Les mains sont baladeuses", comentaria depois o malicioso Boussad. É sempre assim, entre gestos escondidos, que começam a cair as ortodoxias. "Por aqui encurtamos caminho", dissera o Boussad e eu fui atrás dele, de passo cada vez mais apressado e sem virar a cabeça.
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O Parque da Liberdade fica entre a Rua Didouche Mourad e o Boulevard Krim Belkacem.
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O Musée National des Antiquités et des Arts Islamiques foi inaugurado em 1897, o que faz dele o mais antigo da Argélia. Na altura em que o projecto teve início, em 2003, o seu director era o Dr. Lakhdar Driass. Várias peripécias fizeram com que eu próprio acabasse por estabelecer com o grupo argelino uma ligação que passou, em muito, a simples relação profissional. O museu tem como actual directora a minha colega Houria Cherid, que integrou a equipa do projecto Discover Islamic Art.

De entre a importante colecção do Museu aqui vos deixo este nicho em estuque, proveniente de Sedrata e datado do período rustemida (século X).

O site do museu, http://www.musee-antiquites.art.dz/, não faz justiça à colecção. Refira-se, contudo, que o site é recente e representa um importante passo em frente para colmatar uma lacuna que se fazia sentir.

domingo, 22 de novembro de 2009

"AJUDE-ME, POR FAVOR!"

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A minha cadeira mexeu um pouco, não muito, alguém a puxava. Sem tempo para pensar, virei-me e dei de caras com uma mulher, que não era nova nem velha, nem bela nem feia. O "ajude-me, por favor!" soou logo a seguir e fiquei a olhar para os olhos dela, que eram olhos de medo e de desespero. Mas só depois é que pensei nisso, que os olhos dela eram de medo e de desespero. Naquele momento, fitei só a mulher, nem nova nem velha, nem bela nem feia, que se agarrava à minha cadeira e me pedia ajuda. O café calara-se e só a estúpida da telenovela "desconfie dessa mulher, meu amor" soava no aparelho, lá no alto. A mulher continuava agarrada à minha cadeira, puxando atrás de si uma miúda, quinze dezasseis anos, que puxava em sentido contrário e tinha, também, olhos de medo e de desespero, como os da mulher. "Ajude-me a levar a minha filha para casa!", primeiro um pedido, depois uma súplica, depois um sussurro, a voz mais baixa, cada vez mais baixa, a olhar-me com aqueles olhos assustados. O café calado, a filha da puta da telenovela com a conversa do costume "meu bem, eu te adoro, não me deixa não" e por aí fora, e os meus amigos e eu a olharmos para a mulher e para a miúda, mudos, quedos, e sem nada para dizer ou fazer. Um minuto antes, tínhamos o Mundo na mão, discutíamos o Iraque, o Governo, o futuro, tínhamos todas as certezas e todas as respostas e agora uma mulher dizia-me, com medo e desespero, "ajude-me, por favor!", e eu nada, nem um som, nem uma ideia. Apetecia-me fugir porta fora, deixando osamigos, a mulher, a miúda, o café e a telenovela imbecil, mas só consegui ficar a olhar para as duas, paralisado e mais idiota que a televisão. "Ajude-me a levar a minha filha para casa, que tem lá um filho com um ano e meio!". A garota tinha ar disso mesmo, de garota, vestia de cor-de-rosa, é a única cor que me ocorre quando penso nela. Poucos, muito poucos anos antes, tinha bonecas e uma festa de anos na escola. "Ajude-me, por favor!", as bonecas estavam esquecidas ou talvez não, as festas de anos eram uma recordação em papel de fotografia. Ficava agora uma miúda de quinze dezasseis anos, com um bebé de um ano e meio, olhos de medo nela e na mãe, que talvez pensasse "e se eu lhe falto? o que vai ser dela?", mas que naquele momento só a queria levar para casa. Continuei mudo, por uma eternidade de meio minuto, a olhar para as duas e para os olhos das duas e para o desespero das duas.
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"Vá com a sua mãe para casa!", berrou, enfim, um homem gordo de bigode, encostado ao balcão do café. A mulher arrastou a miúda de cor-de-rosa, tavez fosse outra cor mas isso pouco importa, pela porta fora, perdendo-se na noita fria de Castelo Branco. O silêncio continuou por um instante, antes de se retomar o barulho e do som da telenovela "meu bem, meu amor" continuar, idiota como antes. Saímos do café pouco depois, pela mesma rua fria onde pouco antes a mulher arrastara, com medo e desepero, a miúda de cor-de-rosa.
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Crónica publicada em A Planície, em 1 de Fevereiro de 2005.
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Que imagens melhor exprimem a angústia? A resposta é banal, mas sincera. Mais do que quaisquer outros, os pintores expressionistas deram corpo a esse sentimento. Resisti a reproduzir O grito, mas este A onda (1921), de Edvard Munch (1863-1944), e a Natureza-morta com máscaras (1896) de James Ensor (1860-1949) levam-nos, em linha recta, a um universo torturado.

sábado, 21 de novembro de 2009

CRISTOVÃO COLOMBO ERA SOLTEIRO?

Descansem, que não é mais uma daquelas teses disparatadas, mas apenas uma deliciosa boutade com que Lopes Guerreiro resolveu fechar a noite de ontem. O texto pode e deve ser lido num belíssimo blogue que sigo atentamente e que já ganhou lugar cativo no meu quotidiano. Antes de clicarem aqui deixo o aviso: abstenham-se os/as defensores/as furiosos/as das quotas, das paridades e coisas assim. E, sobretudo, os/as macambúzios/as.
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E, caso leias este post, deixa-me que te diga, caro Lopes Guerreiro: para quem, desde há muito, faz vida de nómada, há ali frases que me são estranhamente familiares.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

DO BRANCO À COR

O branco é a ausência de cor ou a junção de todas as cores? Será, mas a brancura da cal, fotografada pelo tunisino Jellel Gastelli (n. 1958) é tão expressiva como o colorido sumptuoso da arquitectura de Luis Barragán (1902-1988). A brancura pode ser barroca? Claro que pode. Tanto quanto a cor pode parecer quase despojada.
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Para estes criadores aqui vai uma homenagem, em forma de poema:
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Curiosidades estéticas
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O mais importante na vida
É ser-se criador - criar beleza.
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Para isso,
É necessário pressenti-la
Aonde os nossos olhos não a virem.
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Eu creio que sonhar o impossível
É como que ouvir uma voz de alguma coisa
Que pede existência e que nos chama de longe.
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Sim, o mais importante na vida
É ser-se criador.
E para o impossível
Só devemos caminhar de olhos fechados
Como a fé e como o amor.
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ANTÓNIO BOTTO

E AMANHÃ COMEÇA A FEIRA DO LIVRO DE MÉRTOLA

Programa e mais informações em:
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http://www.cm-mertola.pt/cm-mertola/upload/cm-mertola/img/feiradolivro2009.pdf



ADITAMENTO A UM DESMENTIDO FORMAL

Podendo o anterior texto – sob o título DESMENTIDO FORMAL – ter causado algumas dúvidas cabe-me esclarecer que não foi / não é / não será minha intenção “apontar o dedo” a sectores, secções ou serviços da Câmara Municipal de Moura. Ninguém está sequer autorizado a dizer ou insinuar que “aquilo” era dirigido a uma secção em concreto.

Limitei-me a reportar um facto preciso, que me chegou de fonte mais que fidedigna.

Tive, e tenho, com estes comunicados um objectivo: clarificar responsabilidades e, até, levar os munícipes a questionarem-me directamente sobre assuntos pendentes e que sejam da minha directa responsabilidade.

NB: Não serão publicados comentários sobre este post.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

LES MAINS DE LA FRANCE

Ce ne sont pas des mains d'artiste,
De poète proprement dit,
Mais quelque chose comme triste
En fait comme un groupe en petit ;


de um poema de Verlaine

nem eu sei porque é que me lembrei disto...

O MALCOM McDOWELL DA BOITE DO REGO

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O João foi buscar-me a um bar da zona da Praça das Flores, o After Eight, poiso de rapazolas como eu, de balzaquianas à procura de emoções e de uma certa esquerda desiludida e a caminho da via alcoólica para o socialismo. O pretexto? "Vai reabrir um bar na zona do Rego, o dono convidou-me para ir até lá e é capaz de ser giro". Para não ser antipático, lá fui.
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O bar era o Rei Cuango (fechou há muito) e ficava na Rua Carlos Reis. O sítio estava quase às moscas, a fazer lembrar uma das cenas finais do filme Nova Iorque fora de horas, com umas pequenas madeirenses que por ali cirandavam e com a grande atracção da noite, o disc-jockey (na altura ainda não se dizia "didjei") Paulo Leston Martins, creio que já falecido.
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Foi uma noite temível. O disc-jockey às tantas, imagino que por deferência do dono do estabelecimento, dedicou-me uma música e uma das pequenas foi-me buscar para dançar. Insistiu, depois de saber que estudava no Instituto Britânico, em falar inglês comigo, "só para treinar". Não faço ideia que falta lhe faria saber inglês numa boîte do Rego, mas enfim... O inglês da moça era péssimo, mas isso não a coibiu de comentar para o patrão: "O miúdo não é nada de especial a dançar, mas no inglês dá uns toques."
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Às tantas comecei a ficar farto daquilo e fiz um ultimato ao João. Convenceu-me a tomarmos um último whisky. Fez bem. Porque assisti a uma cena absolutamente única. O empregado tinha ar de doidivanas e era um perfeito sósia do Malcom McDowell. Com um ar dominador, pegou na garrafa, prendeu a tampa no globo ocular e manteve a garrafa suspensa, enquanto a girava rapidamente pela base. Acto contínuo, e sempre com a tampa pendurada, à guisa de monóculo, serviu o whisky de uma altura superior a um metro, sem falhar os copos nem desperdiçar uma gota. Ao ver-me boquiaberto fez um ar de triunfo.
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Saímos, o João e eu, sozinhos, pouco depois. Ao recordar o Malcom McDowell da Rei Cuango não posso deixar de pensar que Jim Jarmusch ou Quentin Tarantino gostariam de o ter conhecido.

ARGEL V - DA QASBAH ALTA À QASBAH BAIXA

"E pode visitar-se a qasbah?", foi a minha pergunta. Mustafah, motorista da embaixada, olhou para mim quase ofendido. Claro que se podia visitar a qasbah. E do centro da cidade me levou à qasbah alta. O começo não foi muito prometedor. Entrámos a pé por uma rua bloqueada ao trânsito. Era aí que ficava o comissariado da polícia. A esquadra estava blindada, com as janelas protegidas por uma rede de aço. O chefe da esquadra era amigo do Mustafah. Um personagem de filme, baixote, de gestos rápidos e bigodinho cínico. Eu queria visitar a qasbah? Claro que podia. Em voz de comando chamou quatro calmeirões para me acompanharem na "visita". Saímos. Eu no meio, e os quatro polícias à minha volta, munidos de metralhadoras. Senti-me seguríssimo... O passeio durou escassas centenas de metros. A partir de uma determinada zona "não havia condições". Dias depois, pedi ao Mustafah para descer junto à mesquita Ketchoua, na qasbah baixa, perto do mar. Perguntou-me se eu achava que era o Indiana Jones. Fiquei esclarecido.
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Só cinco anos mais tarde me foi dada a possibilidade de cruzar a pé todo o bairro.

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A qasbah de Argel, um denso emaranhado de ruas, ruelas e becos, é Património da Humanidade desde 1992. Sítio hostil às agressões ou ameaças exteriores foi alvo de particular repressão por parte da colonização francesa. Que chegou a fazer uma extensa rua (a actual Abderrahmane Arbadji), de forma a cortar o bairro ao meio.
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Imagem de cima: La casbah d'Alger de Henry Valensi (1883-1960), tela pintada por volta de 1920
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Imagem de baixo: Um simpático sufi, que me enfiou na aljama de Argel e me apresentou ao mufti da mesquita. Tem na mão uma edição antiga das tradições islâmicas, a fundamental obra de El-Bokhari.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

DESMENTIDO FORMAL

Venho por este meio divulgar dois mails remetidos aos trabalhadores da Câmara Municipal de Moura (em 9.2.2009 e em 18.11.2009).

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Boa tarde a todos

Enviei, no passado mês de Fevereiro, uma mensagem com o título “o processo está para despacho do vereador” (cf. infra), a todas as pessoas que, no município, têm correio electrónico.

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Fui, há dias, confrontado com uma situação particularmente desagradável. Um empresário de Moura tinha uma escritura pendente de um documento camarário que estava, uma vez mais, “a aguardar despacho do vereador”. A frase surpreendeu-me, até porque não tinha qualquer documento para despacho.

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Não sei, nem quero saber, quem profere frases desse género. Entendo, contudo, que a óbvia falsidade das mesmas não é inocente. Significados e objectivos políticos à parte, aqui fica o essencial da questão, e repetindo, com algumas alterações, o que em Fevereiro escrevi:

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  1. Em caso algum, e quando confrontado com falhas ou atrasos (reais ou mais ou menos imaginários) dos serviços camarários me desculpei com os funcionários ou com este ou aquele departamento;
  2. Não preciso, por outro lado, de me esconder atrás de ninguém para justificar as minhas falhas e omissões. Quando falho, assumo a falha e peço desculpa. Procuro, sobretudo, corrigir os meus próprios erros;
  3. Não posso, por isso, aceitar ser usado como pretexto para justificar quaisquer atrasos na resposta aos munícipes;
  4. Devo também clarificar que entendo o cargo de vereador como uma missão e um serviço público;
  5. Procuro, por esse motivo, estar disponível para atender os munícipes e, sempre que possível, resolver no mais curto prazo de tempo as questões que me são colocadas;
  6. Documentos essenciais para escrituras, registos etc., são assinados na hora e sem qualquer tipo de entraves;
  7. Outros processos que venham para meu despacho são devolvidos ou no próprio dia ou no dia seguinte. Despachos com mais de 48 horas são uma raridade e têm, por norma, uma justificação precisa;
  8. Exceptuam-se, como é natural, as poucas ocasiões em que me ausento de Moura;
  9. Não tenho processos para despacho neste momento;
  10. Entendo, portanto, que a repetição injustificada de frases deste género têm apenas por objectivo denegrir-me ante os meus conterrâneos. E essa é uma atitude que não posso admitir.

Creio, enfim, que o transitório desempenho das funções de vereador (isto são apenas alguns anos na nossa vida) não mudará o essencial da minha atitude e da forma como me relaciono com os meus conterrâneos. E este princípio não é susceptível de alteração.

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Estou também solidário com o Presidente da Câmara e com os meus colegas de vereação que são, injustificadamente, fustigados com afirmações do género das que me tiveram como alvo.

Mais informo que irei publicar estes textos no meu blogue pessoal. Serão os mesmos também difundidos através da minha lista de mails.

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Cumprimentos,

Santiago Macias

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De: Santiago Macias
Enviada: segunda-feira, 9 de Fevereiro de 2009 10:22
Para: Todos os utilizadores
Assunto: O PROCESSO ESTÁ PARA DESPACHO DO VEREADOR

Bom dia a todos

A frase que encima este texto é frequentemente ouvida a propósito de processos de obras particulares, direitos à informação etc – tenho mesmo sido pessoalmente confrontado com a mesma nas ruas do nosso concelho a este respeito – sem que eu saiba qual a origem, nem me interesse averiguar o assunto.

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Para que conste, e porque a inverdade não deve ser deixada à solta, aqui vos deixo estas afirmações:

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1. Os processos que vêm para meu despacho são devolvidos ou no próprio dia ou no dia seguinte. Despachos com mais de 48 horas são uma raridade e têm, por norma, uma justificação precisa.

2. Exceptuam-se as poucas ocasiões em que me ausento de Moura.

3. Não preciso de me esconder atrás de ninguém para justificar as minhas falhas e omissões. Quando falho, assumo a falha e peço desculpa. Procuro, sobretudo, corrigir os meus próprios erros.

4. Não tenho processos para despacho neste momento.

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Podem divulgar este mail junto de terceiros.

Com os melhores cumprimentos

Santiago Macias



O meu gabinete, de acordo com algumas visões delirantes (a imagem foi produzida pelo notável fotógrafo Jan Banning, que fez um projecto sobre a burocracia no mundo)
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NB: Não serão publicados comentários sobre este post.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

DUBUFFET BY FAIREY

Foi criado um dos primeiros grandes marcos gráficos do século XXI: o cartaz de Obama, Hope, por Shepard Fairey (n. 1970). Era difícil, em artes gráficas, fazer melhor, com tanta simplicidade e com tanta carga política.
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Fairey usa intensamente o vermelho e o azul, as cores da bandeira americana. Se falássemos em termos arqueológicos, diriamos que a tipologia das duas imagens não tem nada a ver. E, contudo, que ninguém me queira convencer que Fairey não se lembrou, ainda que de forma remota ou inconsciente, do uso da cor que Jean Dubuffet (1901-1985) fazia, designadamente neste auto-retrato, de 1966.


domingo, 15 de novembro de 2009

O QUE É O GÉNIO?

Tendo em conta a semana que se aproxima o melhor é começá-la assim...

No início desta cena do filme Amici miei ouvem-se os acordes, um pouco ao estilo do mambo, de Bella figlia dell'amore, uma conhecida ária de Verdi. O que se passa de seguida no interior daquele palácio da alta sociedade merece ser visto. Mais que uma vez.

Che cos’è il genio? È fantasia, intuizione, decisione e velocità di esecuzione. Esta é a frase chave da cena que vos deixo e que deverá, ainda assim, ser evitada pelos que não apreciam humor escatológico. O filme ficou também célebre pela invenção da palavra supercazzola (pretexto para a incompreensível frase Tarapia tapioco come se fosse Antani con la supercazzola prematurata con scappellamento a destra), pela cena da despedida na gare ferroviária e pela inovadora interpretação da ária do Rigoletto que acima referi. 

É uma obra-prima da comédia italiana e relata as aventuras, nem sempre muito recomendáveis, de um grupo de amigos de meia-idade da cidade de Florença. Amici miei (Oh, amigos meus, na tradução portuguesa) foi um sucesso enorme na época. Bem que podia passar de vez em quando na televisão...

 

O filme devia ter sido realizado por Pietro Germi (1914-1974), que escrevera o argumento, mas o desaparecimento prematuro deste pôs a realização nas mãos de Mario Monicelli (n. 1915). O inesquecível grupo era constituído por Ugo Tognazzi (1922-1990), Gastone Moschin (n. 1929), Philippe Noiret (1930-2006), Duilio Del Prete (1938-1998) e Adolfo Celi (1922-1986).

O humor de Oh, amigos meus, tem, também, um toque de melancolia e de sentimento. Mas no sul gostamos das coisas assim, não é verdade?

ARGEL IV - OS DIAS E AS MIRAGENS (2ª parte)

Continuação de:

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A Argel colonial está ainda por toda a parte. Nas ruas, nas tais arcadas onde não se poderá fotografar por razões de segurança, nos palacetes que coroam as colinas em volta do Mediterrâneo. E em sítios como o antigo hotel St. George, instalado em 1889 sobre os restos de um velho palácio hispano-mourisco. Apesar dos trabalhos de renovação com que há 20 anos o paramentaram com um pesado gosto de carpetes e cortinados de decoração densa, no St. George persiste uma aura de brilho que nem as obras conseguiram apagar. As marcas do tempo ficaram amarradas à parede. Haveremos de encontrar fotografias de um tranquilo almoço do Natal de 1920 no jardim do hotel; mais adiante, uma placa junto à entrada do quarto 1101 assinala, respeitosamente, que ali viveu, entre 1942 e 1943, o general Eisenhower. Muito pouco - aquilo que ficou nas fachadas das áreas menos tocadas pela fúria dos melhoramentos - se consegue identificar dessas velhas fotografias. Mesmo assim, justifica-se ainda o “ainda há paraísos”, dito pelo escritor Henry de Montherland depois de uma estadia no St. George .
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É essa ainda um pouco a imagem da cidade de hoje. A descrição feita pelo grande geógrafo al-Idrisi em meados do século XII diz apenas que “Argel se situa à beira-mar; os seus habitantes bebem água doce proveniente de fontes situadas perto do mar e de poços. É uma cidade muito povoada, de comércio florescente, bazares muito frequentados e manufacturas movimentadas”. Embora os livros nos contem toda a saga de Argel ao longo de milénios – cidade de marinheiros, piratas, aventureiros, comerciantes, diplomatas e de todos os desesperados do mar Mediterrâneo -, a sua face actual começou apenas a ser construída após 1830, quando os franceses tomam posse daquele apetecível troço do Norte de África. A pirataria e o corso foram a justificação para as operações militares que se iniciaram naquele ano, com o desembarque de 37000 homens em Sidi Ferruch, e que se iriam prolongar durante muito tempo, sem que a europeização e a cristianização do território alguma vez tivessem sido aceites pelos africanos.
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Ao longo de mais de um século será construída uma próspera e atraente metrópole colonial. Tirando partido do relevo a cidade vai estender-se muito para lá da velha casbah, ocupando os cerros em volta das zonas mais antigas. É, enfim, um pouco da Europa burguesa e capitalista que se vai instalar em pleno Magrebe. A organização urbana da cidade de El-Djezair (as ilhas) há-de, por isso, ser mudada. Os rochedos que deram nome ao aglomerado foram unidos, por força de um enorme aterro, ao continente, criando-se aquele que hoje é conhecido por “velho porto”. A casbah, que antes se estendia até à beira-mar, foi cortada por novas avenidas, ficando apenas, como memória desses tempos, uma pequena ilhota de casas com uma rua a que se deu o nome de “bastião 23”.
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Imagino que terá sido esse sonho de um tempo perdido que deixaram para trás os pieds-noirs (os retornados da Argélia) quando se viram forçados a abandonar esse canto do Norte de África. Nos dias seguintes à independência do país, em Julho de 1962, 5000 pieds-noirs morrerão ou desaparecerão, no meio de infindáveis vinganças. Perto de um milhão sairá em tropel nos meses seguintes.
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E se a memória desses acontecimentos trágicos ficou apenas na memória dos que os viveram, a história da luta da independência está escrita em cada rua e em cada esquina de Argel. Terão morrido entre 300000 e 600000 pessoas, muçulmanas ou cristãs, civis ou militares. Os números precisos jamais serão conhecidos, tal como nunca saberemos da amargura dos refugiados, dos orfãos, dos que foram presos ou deslocados. Fala-se em um milhão de mártires, o que justifica até hoje um culto obsessivo e ao qual não se escapa em Argel.
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A começar pelo monumento aos mártires em Riadh el Feth, que se avista de toda a cidade. O colosso em betão armado e gosto duvidoso alia a memória dos combatentes a um bizarro pragmatismo que voltaremos a encontrar mais vezes. Debaixo do memorial existe um centro comercial, meio-vazio por força da crise económica. E se o triplo obelisco não nos deixa esquecer os mártires, a verdade é que os voltamos a encontrar a cada esquina. Uma das grandes avenidas da cidade é o Boulevard des Martyrs; aos pés da casbah há a Place des Martyrs. Passeamos rodeados por mortos. Uma das grandes artérias comerciais recorda o combatente Didouche Mourad (comandante das forças independentistas na zona de Constantina, abatido em 1955). A outros heróis que não viram o dia da independência – Aït Homouda Amirouche, Youcef Zirout, Mustafa Ben Boulaïd, Mohamed Larbi Ben M’hidi - está também reservado lugar de destaque na toponímia da cidade.E esse aspecto tão ligado ao sacrifício humano parece quase pertencer à genética argelina. Desde há muito que os mártires, de hoje e de ontem, estão presentes na geografia do país. Ao longo de toda a costa multiplicam-se os santuários dos primeiros tempos da cristandade. Em todos eles há basílicas e memórias dos mártires desses dias, a história e a vida de homens e mulheres que morreram em nome de uma crença e de uma causa. Como ainda hoje sucede em Argel, onde os mártires e o sofrimento humano parecem surgir a cada esquina. A paz e uma longínqua tranquilidade são a segunda miragem de Argel.
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