segunda-feira, 31 de agosto de 2009

UNS MINUTOS ANTES DO FIM DO MÊS

Peço ajuda. Podem explicar-me porque é que o autarca Joaquim Raposo quer ganhar os desafios do futuro com uma língua-de-sogra? Ou será com um stick de hóquei?
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HITCHCOCK E O JANSENISMO

A recordação do episódio de Wolf Vostell trouxe-me à memória um episódio ocorrido a propósito do filme I confess de Alfred Hitchcock (1899-1980). A história desenrola-se em torno da figura de um padre que, acusado de um crime, não pode revelar que ouviu o verdadeiro delinquente em confissão. Os Cahiers du Cinema acharam que o filme tinha influências jansenistas. Hitchcock respondeu que não fazia a mínima ideia do que fosse o jansenismo. Seguiu-se uma daquelas intermináveis e sofisticadas polémicas sobre a possibilidade de se ter feito um filme com uma perspectiva filosófica sem conhecer as teorias que a sustentavam. Não faço ideia a que conclusão chegaram. O filme, de 1953, é um dos que menos gosto de Alfred Hitchcock. É muito pouco provável que o volte a ver.
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JARDIM DAS DELÍCIAS

O ano lectivo de 1984-85 foi marcado pela frequência da cadeira de História da Arte Contemporânea. O professor era um homem notável, Manuel Rio-Carvalho, grande especialista de Arte Nova, amante de ópera e um excelente comunicador. Passou-nos guia da marcha para o Diálogo sobre Arte Contemporânea, que decorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, entre Março e Julho de 1985.
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Houve de tudo um pouco, mas a minha memória ficou marcada pela tarde do dia 13 de Abril. Wolf Vostell apresentava uma ópera fluxus, intitulada Jardim das Delícias. Embora já conhecesse algumas das obras de Vostell, e não tivesse ficado mesmo nada convencido com a Homenagem a F. Garcia Lorca, decidi ir. Confesso que na altura pensei que o Jardim das Delícias fosse uma alusão ao célebre quadro de Hyeronimus Bosch.
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O ambiente não era muito encorajador. Uma sala na penumbra, umas mesas de madeira, alfaces sobre as mesas e galheteiros. Não havia cadeiras, pelo que grande parte dos espectadores optou por se sentar no chão. A "ópera" começou. Não havia músicos, mas sim uma fita magnética com sons. Identificava, no meio de uma estridência que fazia recordar um Boeing 707 a descolar, alguns excertos de cante jondo. Pouco mais. Ao fim de uns minutos, e sempre com vontade em ter uma visão positiva das coisas, perguntei ao meu companheiro do ocasião: "As alfaces devem ser para a malta comer. Vamos a isto?". Mal me tinha levantado quando ele me berrou: "Baixa-te!". Um segundo depois, um galheteiro esborrachava-se com fragor acima da minha cabeça. Escondi-me detrás de um reposteiro. Durante cinco minutos foi o caos. Alfaces e galheteiros voavam em todas as direcções. Um grupo de jovens - soube mais tarde que eram estudantes de escultura das Belas-Artes - ergueu uma mesa ao alto e envolveu-a, e a algumas alfaces, em papel higiénico. De onde saiu o papel higiénico foi coisa que nunca percebi.
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A páginas tantas, e já com as munições esgotadas, entra na sala um furioso Vostell. Segue-se uma discussão incongruente e inconsequente entre Vostell e os estudantes. Estes achavam que tinham interagido com a ópera dele, Vostell, em crise mística, gritava "as alfaces são criaturas de Deus!". A coisa acalmou e o fluxo de ruído continuou. No descaramento dos meus 21 anos ainda me cheguei junto do autor para lhe perguntar se esperava aquela reacção. A resposta, que não esquecerei, foi: "Se não te importas, ouvimos primeiro a música; depois discutimos a ideia desta ópera; as alfaces era para comermos durante a discussão". Voilà...
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Na segunda-feira seguinte fui obrigado, por entre a hilaridade da turma, a relatar os acontecimentos de sábado. O tempo se encarregou de me confirmar que uma coisa é a forma como os autores fazem a leitura das suas obras e que uma obra, bem diferente, é a apropriação que o(s) público(s) faz(em) dela(s).
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De cima para baixo: Wolf Vostell (1932-1998), escultura e instalação.

Vostell viveu grande parte da sua vida em Espanha. Os comentários/obras sobre a sociedade contemporânea, tantas vezes feitos em obras de arte que usavam como ponto de partida o lixo electrónico, está patente no museu que se construiu perto de Malpartida de Cáceres.

Sites a consultar:

http://www.museovostell.org/

http://www.wolf-vostell.com

Já agora, O jardim das Delícias, dos inícios do século XVI, está patente no Museu do Prado, em Madrid. O Museu Nacional de Arte Antiga tem em exposição uma outra obra célebre de Bosch, As tentações de Santo Antão.

domingo, 30 de agosto de 2009

SEMPÉ

A placidez dos domingos e o quase dolce far niente dos domingos. Um dia bom para ler Sempé e para rirmos amargamente com o cínico humor de Sempé. Quase sempre sobre o quotidiano e o tédio do quotidiano.
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Jean-Jacques Sempé nasceu em Bordéus, em 1932. À boa maneira iconoclasta gaulesa não tem site nem tem muitas imagens disponíveis na net. Alguns dos seus livros, realizados em conjunto com René Goscinny, estão disponíveis em Portugal.

sábado, 29 de agosto de 2009

MOURA MAIS À FRENTE

E mais três intervenções cujo lançamento do concurso para realização da obra a Câmara Municipal de Moura acaba de aprovar:
Requalificação da zona do Regato (Amareleja)
Posto de recepção ao turista (Castelo de Moura)
Jardim das Oliveiras
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Está em processo de concurso:
Reabilitação da Igreja de S. Francisco
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E há mais uma empreitada cujo concurso acaba de ser publicado no Diário da República:
Infra-estruturas do loteamento B da Zona Industrial
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É por essas e por outras que acredito num concelho melhor.
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MOURA LÚDICA

Do site www.maistuning.com:

Nos dias 22 e 23 de Agosto de 2009 realizou-se o 1º Moura Tuning Show, organizado pelo Clube Tuning de Moura. O evento realizou-se no Parque de Feiras e Exposições de Moura, recinto cedido pela Câmara Municipal de Moura.

Logo à chegada ao recinto nota-se que o mesmo apresenta boas condições para a prática de uma concentração tuning. O Recinto possui uma elevada área útil para a exposição automóvel, seja exterior ou interior, e acima de tudo possibilita óptimas condições aos fornecedores de exporem o seu trabalho ou produtos. De referir também que quem pernoitou no recinto com a sua tenda de um dia para o outro teve, a seu belo prazer, direito a ar condicionado. Exactamente! Ar condicionado para quem pernoitou dentro do pavilhão de exposições n.º 2.

Mas o evento decorreu com pouca adesão nas horas seguintes, dando a entender que o mesmo viesse a ter pouca participação. A isso se deveu em muito o excesso de calor (40º à sombra) que se fazia sentir naquela cidade alentejana. Não sendo por isso de estranhar a presença de um canhão de água (cortesia dos Bombeiros Voluntários de Moura) para refrescar os presentes. Desta forma, o recinto apenas começou a ficar composto com o aproximar da noite.

De realçar que no Domingo de manhã, antes da abertura ao público, o recinto foi devidamente limpo por uma equipa de limpeza cedida pela Câmara Municipal. (fim de citação)

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É claro que, tendo em conta o que ouço dizer da parte de meia dúzia de ressabiados sobre o-que-temos-e-que-não-temos-e-que-nos-outros-sítios-é-melhor registo:
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1. A iniciativa do Clube Tuning de Moura, que constituiu um exemplo de juventude e de dinamismo;
2. O reconhecimento do trabalho que a Câmara Municipal realizou no Parque de Feiras e Exposições (inaugurado em Maio de 2007);
3. O facto de Moura ser um exemplo para terceiros.
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Venha de lá o 2º Moura Tuning Show, em 2010. Cá estaremos.
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Contacto do Clube Tuning de Moura:
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Vejam as outras fotografias do encontro que estão no site.

FESTAS DE SANTO ALEIXO DA RESTAURAÇÃO

Estão a acontecer. Com entusiasmo, espectáculos e animação. E têm site!
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A Santo Aleixo, cidadãos!

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

A CHACUN SON FRUIT

Jorge Palma declara, em entrevista ao I, que "para funcionar de manhã preciso de três cervejas". Se fosse a Carolina Patrocínio precisaria de três cerejas. Sem caroços, evidentemente.
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Site do jornal de Martim Avillez Figueiredo: www.ionline.pt

ARQUEOLOGIA - PARTE III

Também nós (...) desejamos sinceramente atingir um dia o ideal da sociedade sem classes.
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Declaração do perigoso comunista Diogo Freitas do Amaral, em 1975. Vale a pena ouvir o registo todo. Tentem controlar o riso para não desassossegarem a vizinhaça sff. Porque o que o senhor queria dizer, bem entendido, é que queria uma sociedade com muita classe.
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quinta-feira, 27 de agosto de 2009

RAMADÃO EM TUNIS

Habib varreu a Praça da Qasbah com um gesto largo: "todo este terreiro estava cheio. Haveria talvez 15 ou 20 mil pessoas. No topo, onde está o edifício da Câmara Municipal, Bourguiba discursava à multidão".
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Em pleno mês do Ramadão, Bourguiba permitia-se cuspir fogo sobre o mês sagrado dos muçulmanos. Em 1960 isso era possível. Bourguiba clamava que o Ramadão era um prejuízo para a sociedade. E que o facto das pessoas passarem um longo período sem trabalhar levava à paralisação do país. E que tudo aquilo não passava de um enorme equívoco e de um terrível absurdo. A meio do discurso Bourguiba atreveu-se a beber uma Fanta. A multidão, entusiasmada, aplaudiu.
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Habib termina o relato quando a chuva começa a cair com mais força. A tempestade sublinha a escuridão da noite e só a luz dos candeeiros dá vida à Praça da Qasbah. O largo está deserto e é difícil imaginar a multidão e, mais ainda nos nossos dias, o discurso de Bourguiba. Horas antes cruzara a pé uma Tunis sem vivalma. Nem um carro à vista, os eléctricos parados e sem luz, um silêncio absoluto. Uma cena de filme do apocalipse. O fim do dia marca o fim do jejum durante o mês do Ramadão e as famílias reunem-se à volta da mesa, numa festa quotidiana que se prolonga durante 30 fins de tarde. Durante aquela hora a vida pública desaparece e as ruas são percorridas por um torpor que não tardará a desaparecer.
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O jejum generaliza-se nos tempos que correm. A pressão social e religiosa chegaram mais longe que o laicismo de Bourguiba. E o episódio da Fanta parece hoje longínquo e à margem da realidade. A Tunísia continua laica, mas talvez menos. Embora Bourguiba tivesse razão. Durante o Ramadão a produtividade baixa a nívies sem paralelo. E depois, assegura-me o palestiniano Sa'd Nimr, que não jejua, "as pessoas andam irritadiças, a concentração é menor, há mais acidentes de automóvel e as coisas correm mal no dia-a-dia".
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É este um mês de reflexão, tolerância e oração? Muhammad Najjar, jordano, duvida que assim seja. No fundo, para muitos é uma obrigação, cumprida com sofrimento e sem verdadeira e profunda convicção. O aspecto espiritual é desvalorizado e o compromisso social ganha o primeiro plano. Muhammad é lapidar e pragmático: "não é que as pessoas façam jejum; simplesmente deixam de comer".
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O Ramadão é um mês de jejum e oração. Os muçulmanos não devem tomar qualquer refeição entre o nascer e o por-do-sol. O final do Ramadão é marcado por uma grande festa, chamada Aid el Fitr e que este ano [2005] terá lugar a 2 de Novembro. O próximo Ramadão inicia-se a 24 de Setembro e termina a 22 de Outubro de 2006.
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Crónica publicada em A Planície de 1.11.2005
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Habib Bourguiba (1903-2000), pai da independência da Tunísia. Foi destituído por um golpe palaciano em 1987. Está sepultado na sua Monastir natal.

Tunis - Praça da Qasbah

O Ramadão começou a 21 de Agosto e prolonga-se até 19 de Setembro.

2.034.660 EUR

O valor artístico da fotografia quase é obscurecido pelo seu valor pecuniário. The pond moonlight (O luar do lago) foi vendida há anos pela soma de 2.900.000 dólares, um pouco mais de dois milhões de euros. A conclusão a tirar é que as teses de Walter Benjamin sobre a importância dos meios de reprodução mecânicos como contribuição para a democratização da arte não diminuiu o interesse na forma de encarar os objectos artísticos como totems...
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Convém, de qualquer maneira, ser justo. O pictorialismo da imagem, e um certo tom nostálgico, fazem deste luar uma obra-prima. E, refira-se, até o enquadramento corresponde aos cânones.


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The pond moolight é uma obra de Edward Steichen (1879-1973). Data de 1904 e é a 2ª fotografia mais cara jamais vendida. Existem três exemplares deste luar, todos diferentes entre si, uma vez que o processo de cor era aplicado manualmente.
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De forma mais ou menos desordenada irão passando aqui pelo blogue as restantes imagens do top-10-$-fotográfico.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

LISBOA I - PORTUGAL E O MUNDO

A exposição Portugal e o mundo nos séculos XVI e XVII vai estar patente no Museu Nacional de Arte Antiga até dia 11 de Outubro. É um bom pretexto para uma visita a um dos museus portugueses mais interessantes. É, sobretudo, o pretexto para ver peças já conhecidas e para tomar contacto com um razoável número de produções artísticas que, por norma, só vemos nos catálogos ou que desconhecíamos.
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No período moderno, o mundo europeu alarga-se e "globaliza-se". As produções artísticas que ali apreciamos são fruto de uma frenética actividade comercial. Estranhamente, Portugal vira costas ao Mediterrâneo e lança-se na aventura atlântica, para sul mas também para norte de onde chegam as esculturas e as pinturas da Flandres. Em duzentos anos todas as alquimias artísticas irão ser tentadas. O fascínio do exótico é evidente e é essa realidade que podemos, em todo o esplendor, abarcar nesta exposição. Vale muito mais que os 5 € da entrada.

Taça feita a partir de um corno de rinoceronte por Nikolaus Pfaff (c. 1556-c.1612). As caprichosas formas da taça estão na pré-história da Arte Nova.
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Uma breve nota final: tive a agradável supresa de constatar que a luminotecnia da exposição é assinada por Vitor Vajão, em técnico com o qual a Câmara Municipal de Moura tem vindo a trabalhar em tempos recentes. São dele os projectos de iluminação da Igreja de Santo Aleixo (2006-2008) e do Edifício dos Quartéis (obra em curso).

MÉDICAS ESTRANGEIRAS EM MOURA

No início da semana teve a Câmara Municipal de Moura a oportunidade de receber, no seu salão nobre, representantes da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo e duas médicas cubanas que irão prestar serviço no concelho de Moura. A Câmara Municipal apoia esta medida mediante o pagamento do alojamento das duas médicas. Uma arreliadora avaria automóvel ocorrida durante a viagem para Moura impediu a Dra. Rosa Augusta Valente de Matos Zorrinho, presidente da Administração Regional de Saúde, de estar presente naquele acto. O meu colega de vereação Rafael Rodrigues teve que se deslocar pouco depois, e por razões particulares, ao Centro de Saúde de Moura, onde se cruzou com a Dra. Rosa Zorrinho. O mínimo que podemos fazer é saudar a eficiência dos mecânicos alentejanos…
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Em declarações prestadas a um canal de televisão, a Dra. Rosa Augusta Valente de Matos Zorrinho, presidente da Administração Regional de Saúde, referiu, como exemplos de cooperação com o Ministério da Saúde, "os municípios de Ferreira do Alentejo, Portel e Almodôvar e ahh! Sines”. Não mencionou as Câmaras Municipais (ahhhh!, comunistas) de Santiago do Cacém e de Moura.
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Os comissários políticos em funções parecem-se cada vez mais, e a cada dia que passa, com o célebre Diácono Remédios, que ficava paralisado quando via a foice e o martelo e apenas balbuciava “os comu…, os comu…, os comu…”.

Diácono Remédios - personagem célebre do programa televisivo humorístico Herman Enciclopédia (c. 1998). Exemplo perfeito de um certo Portugal ultramontano que julgávamos desaparecido...

terça-feira, 25 de agosto de 2009

QUEM SABE, SABE

Aqui vos deixo um link de interesse, embora os contributos sejam apenas intermitentes:
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O autor, Luís Moreira, é um dos grandes designers portugueses. Por diversas vezes tive a oportunidade de trabalhar com ele. É bom trabalhar com quem sabe, até porque é órrivel trabalhar com amadores.
O Luís, hélas, não é de Moura. Mas não se pode ter tudo na vida...
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Veja-se o site:

TIAGO SIMANCAS - IV

No início do Verão de 2005, quando pensava que a minha vida ía mudar (olá, se mudou...) o Alentejo Popular entrevistou-me e pediu-me que traçasse um breve quadro autobiográfico (ou auto-biográfico?, desde há meses já não sei mesmo escrever). Aqui está o textinho. No essencial, escreveria o mesmo. E entre Mértola e o concelho de Moura mon coeur balance. Mesmo.
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B.I.
“Devias ter ido para Ciências”, horrorizou-se a família quando a escolha foi História. Ao menos podia ter sido Português-Francês, que servia para dar aulas. Há uma legião de alunos que nunca tive e que me agradecerão esse facto, mesmo sem o saberem. E História foi uma terceira escolha, depois do veto familiar ao Cinema e ao Jornalismo. “Devias ter ido para Direito”, já me via de beca e rodeado de pilhas de livros chatos como a morte. “Devias ter ido para a carreira da magistratura, que é bem bonita”, insistia o pai e eu nunca percebi porque é que é bonito andar-se vestido de barbeiro com uma bata preta. Pior, os magistrados têm sempre uma vida social um pouco mais que recatada, pelo menos era assim, e sempre me pareceu absurda aquela vida de convento sem convento. “Devias ter ido para economia, olha o teu amigo Paulo, o ordenadão que ele tem”. Aos 18 anos escolhe-se um curso por amor, nem que seja o terceiro amor, depois do veto ao Cinema e ao Jornalismo. Depois logo se vê. Ou seja, verei sempre os pais a abanarem a cabeça em desalento profundo. “Você devia ir para crítico de arte”, aconselhou-me, a sério, o prof de Arte Contemporânea na Faculdade. Esta nunca percebi, mas se calhar fiz mal em não ter seguido o conselho. Textos incompreensíveis qualquer pessoa é capaz de escrever. “Devias ir viajar para outros sítios…”, talvez devesse mas não me apetece e depois fico assim sem ser capaz de explicar porque gosto tanto de me sentar ao fim da tarde no café do Petit Zoco de Tânger ou de estar em Argel. “Devias dedicar-te só ao doutoramento”, sim, sim, fora a Assembleia e mais as exposições e o Museu de Mértola. “Devias ter mais cuidado contigo” e eu digo que sim, mando vir mais um kir e depois outro e fumo um par de cigarros antes de sair para a confusão de Montparnasse, que é o sítio onde mais gosto de beber kir e fumar cigarros. “Devias cortar a frase anterior, que parece pedante”. Não corto, quero lá saber.
Aqui estamos, então. 42 anos, um casamento, dois filhos. Um doutoramento em História, alguns livros publicados. Seria melhor se pudesse dizer alguns livros excepcionais publicados, mas não posso. Um iMac em cima do computador, onde estas letras se alinham, muitos livros à volta. Uma Leica M6, uma Leica R7. Duas exposições, Portugal Islâmico (1998) e Marrocos-Portugal (1999) que valeram amizades para a vida. O Museu de Mértola, dez anos à volta do núcleo islâmico (1991-2001). A miragem da solidão e o medo da solidão como a de Meursault em “O estrangeiro” ou a de Isak Borg em “Morangos silvestres”. Os amigos, alguns amigos. Uma casa em Mértola, um refúgio na Salúquia.
“Devias pensar em sair de Mértola”, alguém me segreda ao lado. E eu sempre com aquela mania de nunca fazer o que me dizem que devo fazer.

TIAGO SIMANCAS - III

E quem é esse tal Tiago Simancas?
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Fácil, pelo menos para alguns menos distraídos. É um anagrama de Santiago Macias.

TIAGO SIMANCAS - II

Texto do novo mapa turístico do concelho de Moura (autor: Tiago Simancas)
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A fronteira com Espanha, a oriente, e o Guadiana, a ocidente, são as grandes fronteiras do concelho de Moura. A água dos seus rios e ribeiras, a fertilidade de boa parte das terras e a abundância de minério desde cedo que chamaram gente a este território.
Longe dos grandes entrepostos comerciais do litoral, foi na terra e da terra que a população do concelho sempre viveu. Foi assim que, ao longo dos séculos, se organizaram e expandiram as aldeias. Foi assim que o concelho de Moura fez a sua história e se afirmou.
Para além de Moura, sete localidades, Amareleja, Safara, Sobral da Adiça, Póvoa de S. Miguel, Sto. Aleixo da Restauração, Santo Amador e Estrela, dão corpo e alma ao concelho. São sítios bem distintos, de personalidade própria. Envolvem-nos as oliveiras, que são imagem de marca do concelho. Nas suas imediações, ou cruzando-as, há rios, onde se pesca. Os campos são ainda terreno de caça ou, onde tal é possível, de passeio.
O ritmo da vida, ainda hoje marcado pelas estações agrícolas, é tão antigo como o próprio concelho. As quatro estações do ano conhecem ainda uma sequência com poucas alterações. Não se perdeu, assim, a arte de fazer os excelentes queijos, a doçaria, os enchidos, os vinhos e azeites que são motivo de orgulho para o concelho de Moura.
Num território onde a vida sempre correu num harmonioso equilíbrio entre o Homem e o meio ambiente à sua volta, novas perspectivas se abrem neste início do século XXI. O sol, fonte inspiradora de um arrojado projecto de energias renováveis, situado em Amareleja, a barragem de Alqueva e a futura exploração da Herdade da Contenda (propriedade do município) permitem aos habitantes do concelho uma renovada esperança e a perspectiva de um futuro melhor.

TIAGO SIMANCAS - I

Texto do novo mapa turístico da cidade de Moura (autor: Tiago Simancas)
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A história de Moura começa no castelo. À sólida posição defensiva que o cerro mais alto da cidade proporcionava, vieram juntar-se os férteis terrenos à sua volta e a abundância de água que caracteriza este território. Estava encontrada a chave do crescimento da cidade ao longo dos séculos. As marcas do passado que pontuam a cidade são reflexo dessa prosperidade agrícola, e de uma estratégica posição junto à fronteira que o tempo apenas se encarregou de sublinhar.
Cidade de contrastes, nas ruas de Moura confrontam-se igrejas majestosas e discretas capelas, as casas brancas da arquitectura popular e uma menos discreta presença de palácios aristocráticos. A imagem da cidade é forte e o seu carácter mediterrânico é sublinhado por uma população que faz da rua e do encontro nos espaços públicos uma das características mais marcantes da cidade. É também essa permanente disponibilidade dos mourenses para o convívio que anima cafés e tabernas ao fim do dia, e que dá força a um cante alentejano que tem nesta terra grandes intérpretes.
A água, matriz da cidade e um dos seus principais símbolos, continua a marcar o presente e a lançar perspectivas de futuro para os mourenses. A barragem de Alqueva e os projectos turísticos que estão a ser desenvolvidos à sua volta abrem, agora, novas perspectivas de desenvolvimento à cidade e ao concelho.
Numa cidade que vive de forma intensa o dia-a-dia merecem um destaque especial as Festas da Padroeira, em honra de Nª Senhora do Carmo (em Julho), que trazem a Moura milhares de expatriados e de forasteiros. Mas também as animadas e concorridas feiras de Maio e de Setembro, momentos altos no calendário de uma cidade pouco habituada a parar.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

POIS DEUS ABANDONA A ANTÓNIO

Quando de repente, à hora da meia-noite, se ouvir
passar a turba invisível
com músicas requintadas, com vozes –
a tua sorte que já cede, as tuas obras
que falharam, os planos da tua vida
que deram em equívoco, não os deplores em vão.
Como preparado há muito, como corajoso,
despede-te dela, da Alexandria que se vai embora.
Sobretudo não te enganes, não digas que foi
um sonho, que foram defraudados os teus ouvidos;
tais esperanças vãs não te rebaixes a aceitar.
Como preparado há muito, como corajoso,
como convém a ti que mereceste tal cidade,
aproxima-te resoluto da janela,
e ouve com emoção, mas não
com as súplicas e as queixas dos covardes,
qual último deleite, os sons,
os instrumentos requintados da turba oculta,
e despede-te dela, da Alexandria que perdes.
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O poema é de Konstandinos Kavafis (1863-1933) e data de 1911 (tradução de Joaquim Manuel Magalhães e de Nikos Pratsinis). Evoca a noite anterior à batalha de Alexandria (30 a.C.), após a qual Marco António se suicidou. É, seguramente um dos mais belos e conhecidos poemas de Kavafis. Simboliza bem, segundo creio, o estado de dúvida e incerteza que tantas vezes enfrentamos na vida.

TODAS AS CRIANÇAS ESTÃO A APRENDER INGLÊS...

Este é um dos actuais slogans do PS. Admito que seja verdade e que todas (mesmo todas?) as crianças estejam a aprender inglês. Alguém fará o favor de me explicar, com menos espalhafato, quantas é que estão a aprender português? A avaliar pelo estado em que chegam à Universidade não devem ser muitas...

domingo, 23 de agosto de 2009

A JORNALISTA, O ESCRITOR E A TENTAÇÃO DO EXÓTICO

No Fugas de ontem surgiram, em textos diferentes, quatro afirmações que, antes de mais, me divertiram:
1. A jornalista não fumou um narguilé em Marrocos, onde se encontram por toda a parte, mas fê-lo em Istambul;
2. O comerciante de Istaambul tinha um chapéu típico dos muçulmanos;
3. Kairouan (Tunísia) é uma cidade onde ainda há muitos camelos;
4. É frequente verem-se em Kairouan mulheres usando uma burqa.
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Uf!
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Vamos aos factos:
1. Nunca vi em Marrocos narguilés por toda a parte. Vendem-se nos bazares aos turistas à procura de coisas típicas; na realidade, o narguilé difundiu-se pelo norte de África otomano, o que quer dizer que é mais frequente nas zonas onde a ocupação turca foi mais persistente (Egipto) e muito menos visível nas áreas onde ela não chegou (Marrocos);
2. Não há chapéu típico dos muçulmanos; a jornalista refere-se provavelmente ao fes turco, normalmente revestido com veludo vermelho;
3. Em Kairouan haverá dromedários (não camelos), mas hoje quase só para gáudio dos visitantes da cidade;
4. Nunca vi mulheres usando a burqa na cidade; só o hijab e, em muito menor grau, o niqab (as diferenças são claras - cf. infra)
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A procura do exótico é irmã gémea do desconhecimento e do descuido...
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FINISTERRA

Por pura aselhice não consegui colocar no post de ontem o vídeo que acompanhava a Lusa e que estava disponível no auditório da exposição.
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sábado, 22 de agosto de 2009

LUSA - A MATRIZ PORTUGUESA NO BRASIL

Ao referir ontem a arqueta islâmica do Museu de Moura, evoquei, de forma breve, a internacionalização da peça, que participou numa exposição montada no Outono de 2007 no Rio de Janeiro: Lusa - a matriz portuguesa. O local - a Fundação do Banco do Brazil, bem perto da igreja da Candelária - era excepcional, tal como o era a excepcional concepção que o produtor Marcello Dantas criou para aquele espaço. Havia locais com cheiros levados para Portugal com os Descobrimentos, havia uma gigantesca cama de sons, onde muitas pessoas se deitavam ao mesmo tempo para ouvirem os sons que vinham debaixo do estrado. A exposição ocupava os vários pisos da antiga sede do banco e incluía um autêntico best of da arqueologia e da arte portuguesas. Em termos pessoais coube-me o comissariado de um sector e a colaboração noutro. Poucos projectos me deram tanto prazer como esse, devo confessar, sobretudo pelo enorme privilégio de trabalhar com pessoas de quem gosto.
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Lusa - a matriz portuguesa foi um colossal sucesso de público, tendo chegado, só no Rio de Janeiro (foi também apresentada em versão reduzida em São Paulo e em Brasília), quase a um milhão (!) de visitantes.
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Fachada da exposição
A cama dos sons
O sector islâmico

Explicando ao embaixador Francisco Seixas da Costa a forma como, no período islâmico, se apagavam adversários eliminando os seus nomes nas lápides. Velhas tradições...

Sobre o trabalho do produtor Marcello Dantas veja-se:

http://www.magnetoscopio.com.br/

AD / AH

Ainda há dias falava com uma amiga sobre a necessidade de sermos claros na escrita e termos atenção ao rigor do que dizemos.
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Eis que ontem, de forma meio distraída, pus no blogue a datação de uma peça do Museu de Moura, tendo para o efeito utilizados dois calendários. Porquê? Porque quando tratamos de matérias relacionadas com a história do período islâmico é da praxe usarmos, em simultâneo, as duas datas. Só que não expliquei o método e só os que estão familiarizados com o calendário islâmico terão percebido aquilo. Bem prega Frei Tomás, minha amiga...
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Então aqui vai. Os muçulmanos regem-se pela Hégira, um calendário lunar de 354 ou 355 dias que tem início no ano 622 da era cristã. Ou seja, dada a diferença de dias em cada ano, não basta subtrair 622 à data actual para sabermos em que ano islâmico estamos.
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Confuso? Nem por isso. Nos meus tempos de estudante universitário havia um livro, de Manuel Ocaña Jiménez, Nuevas tablas de conversión de datas islámicas a cristianas y viceversa, ao qual recorríamos. O método era fiável mas as tabelas complexas e demoradas. Hoje há sites que fazem a equivalência de forma automática. O mais prático é este (suiço, e talvez isso não seja um acaso):

http://www.oriold.uzh.ch/static/hegira.html

Ou seja, ter nascido a 3 de Junho de 1963 equivale a 10 de Muharram de 1383.
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Testem isto com os amigos e a família.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

A ARQUETA ISLÂMICA DO MUSEU DE MOURA

O Museu de Moura tem na sua colecção dois conjuntos de placas em osso que serviram de revestimento a uma pequena arca. Da arca, provavelmente construída em madeira, não nos chegaram quaisquer vestígios. Os conjuntos apresentam uma decoração idêntica, finamente pintada e de grande simplicidade.

Parece-nos, por comparação com outras peças conhecidas, um dos exemplares de decoração mais sóbria (podemos mesmo falar de um certo "primitivismo"), no contexto dos marfins e ossos islâmicos do Mediterrâneo Ocidental.

A figuração é simples: a peça é marcada pela presença central de uma rosácea de laçaria ladeada por duas figuras humanas (numa das faces é apenas visível uma delas). Os círculos das rosáceas eram desenhados a compasso, sendo depois as figuras esboçadas a tinta ou com traços de manganés com um pincel, preenchendo-se o resto com pigmentos.

As figuras humanas foram representados em duas dimensões, sem qualquer modelação de luz e sombra, e de forma esquemática: os olhos são dois pequenos círculos, cuja direcção em que olham é dada pela posição relativa da íris face às sobrancelhas. A boca é simbolizada por um único e fino traço.

As figuras da peça de Moura parecem envergar roupagens largas, de tradição oriental - possivelmente o kaftan, longa túnica de seda, veludo ou cetim que se prolongava até aos joelhos ou aos tornozelos, de longas mangas e aberta à frente. A tipologia das figurinhas, de grossas sobrancelhas arqueadas e longo nariz, aponta também para o arquétipo representativo dos homens do Próximo Oriente.

Nos extremos da composição figuram dois conjuntos fitomórficos, que parecem tentar uma representação realista, presente em toda a arte islâmica ocidental e cujo uso generalizado atingiu uma certa convencionalidade que facilita a sua identificação. Longos e flexíveis caules rematados por formas globulares combinam-se, em registos sobrepostos, com flores de lótus envolvidas por palmetas digitadas.

A atribuição da cronologia foi realizada através do estudo comparativo desta peça com exemplares semelhantes oriundos de Espanha, com datações propostas para os séculos VII-VIII AH / XIII-XIV AD. A presença dos elementos antropomorfos (praticamente idênticos aos das peças esgrafitadas de Murcia, da primeira metade do séc. VII AH / XIII AD), e a própria data da reconquista de Moura permitem-nos propôr os inícios do séc. VII AH / XIII AD como datação plausível para o fabrico desta peça.

As plaquinhas foram encontradas durante as escavações realizadas em 1980/81 no Castelo de Moura. Pude, felizmente, integrá-las em exposições montadas em Portugal (Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, em 1998/99) e no estrangeiro (Rio de Janeiro: Fundação do Banco do Brasil, em 2007). Tenho a certeza de já ter visto uma peça muito semelhante numa colecção italiana. Só me falta recordar qual...

THUNDERBOLT II

Mais uma proeza de Usain Bolt e mais uma espectacular fotografia. Desta vez de Adrian Dennis, para a AFP.
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CASTER SEMENYA

Subitamente, foi lançada a dúvida. A novíssima campeã do mundo dos 800 m. pode não ser uma mulher. Haverá testes e certificações. A família garante que é uma mulher, a federação sul-africana idém aspas. O mais provável é que os testes científicos o venham a confirmar.
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Algumas questões:
1. Se Caster Semenya fosse branquíssima e europeia alguém levantaria a lebre desta forma?
2. Se Caster Semenya não tivesse uma aparência menos convencional e fora dos padrões de Hollywood alguém ousaria fazer perguntas?
3. Quantas faces, mais ou menos científicas, tem o racismo?

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

CUPIDO E PSYCHÉ

O da "Psyché ranimée par le baiser de l'Amour", do Canova, é bem melhor [que Rodin]... (na opinião de Alexandre Monteiro)
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O conjunto Psyché ranimée par le baiser de l'Amour, esculpido por Antonio Canova (1757-1822), está no Museu do Louvre. Deixo aqui a imagem.
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E o link para outras propostas:

http://alexandre-monteiro.blogspot.com

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

ARCTIC SEA

A princípio ainda fiquei morbidamente entusiasmado: um navio desaparecido sem deixar rasto. Que segredos guardaria o Arctic Sea? Que negócios obscuros haveria? Que segredos de estado estariam ocultos pelo plácido cargueiro? Seguiram-se dias intensos. Buscas e rumores. Informação e contra-informação. Notícias de raptos e de ameaças. Pistas e desmentidos. Pedidos de resgate e a recuperação do navio. Pelo menos aparentemente, o controle do navio terá sido retomado.
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Ainda pensei, morbidamente, na possibilidade de um Mary Celeste da era cibernética... Ao que parece, a explicação será mais fácil e plausível. E mais preocupante também.
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O caso do Mary Celeste é o mais conhecido mistério dos mares. O navio partiu de Staten Island (Nova Iorque) a 7 de Novembro de 1872 com dez pessoas a bordo. Deveria aportar a Génova algumas semnas mais tarde. Foi encontrado à deriva no dia 4 de Dezembro do mesmo ano, 400 milhas a leste dos Açores. O Mary Celeste estava em perfeitas condições, mas não estava ninguém a bordo e o bote salva-vidas tinha desaparecido. Nunca se soube o que aconteceu, como ou porquê os tripulantes foram varridos da face da Terra.

LE BAISER

Friendship is Love without his wings!
Lord Byron (1788-1824)
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Le baiser é uma célebre obra de Auguste Rodin (1840-1917). Coisa extraordinária, esta ideia do Estado Francês: encomendar uma tal escultura para a Exposição Universal de 1889. Existem três versões em mármore deste magnífico beijo.

NELSON ÉVORA

Um jornal dizia hoje que "um campeão mundial e olímpico quando fica em segundo lugar não tem grandes razões para celebrar". Nós na Pátria somos assim. Ou oito ou oitenta. Coitado do Nelson Évora, que agora é obrigado a ganhar tudo.
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Um grande campeão faz-se de vitórias, decerto. De vitórias em provas importantes. Mas um campeão faz-se também de gestos de cortesia e de cavalheirismo, como os que Nelson Évora ontem teve. O seu sincero fair-play diz bem da sua dimensão de grande atleta e de grande campeão. Que o seu exemplo sirva para os mais novos. E para os jornalistas impacientes...

A fotografia de Dominic Ebenbichler para a Reuters não é absolutamente excepcional. Mas tem dinâmica e engenho e tem todos os elementos que uma boa fotografia de desporto deve ter.
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O site da Reuteurs tem sempre boas fotografias: www.reuters.com.
Nelson Évora é atleta do Benfica: www.slbenfica.pt.

MINOTAURO

É o mais antigo e um dos mais belos espectáculos tauromáquicos. As representações que se conhecem do palácio de Cnossos (1700-1400 a.C.) e onde são visíveis vários homens fazendo acrobacias em torno de um touro são a inspiração directa de um das mais genuínas formas de lidar uma fera. Nela, a aproximação é feita ao touro de forma a que o homem se esquive ou passe por cima dele se lhe tocar e, sobretudo, sem ser tocado. O efeito é espectacular, e muito belo. E, acima de tudo, profundamente verdadeiro.
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Existem diversas variantes, que disfrutam ainda hoje de grande popularidade em Espanha e no sul de França.


Há um site específico sobre os recortadores: www.recortadores.com
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No youtube estão também disponíveis alguns vídeos sobre este original tema.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

ACEITUNEROS

Andaluces de Jaén,
aceituneros altivos,
decidme en el alma, ¿quién,
quién levantó los olivos?
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No los levantó la nada,
ni el dinero, ni el señor,
sino la tierra callada,
el trabajo y el sudor.
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Unidos al agua pura
y a los planetas unidos,
los tres dieron la hermosura
de los troncos retorcidos.

Levántate, olivo cano,
dijeron al pie del viento.
Y el olivo alzó una mano
poderosa de cimiento.
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Andaluces de Jaén,
aceituneros altivos,
decidme en el alma ¿quién
quién amamantó los olivos?

Vuestra sangre, vuestra vida,
no la del explotador
que se enriqueció en la herida
generosa del sudor.

No la del terrateniente
que os sepultó en la pobreza,
que os pisoteó la frente,
que os redujo la cabeza.
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Árboles que vuestro afán
consagró al centro del dia
eran principio de un pan
que sólo el otro comía.

¡Cuántos siglos de aceituna,
los pies y las manos presos,
sol a sol y luna a luna,
pesan sobre vuestros huesos!

Andaluces de Jaén,
aceituneros altivos,
pregunta mi alma: ¿de quién,
de quién son estos olivos?

Jaén, levántate brava
sobre tus piedras lunares,
no vayas a ser esclava
con todos tus olivares.

Dentro de la claridad
del aceite y sus aromas,
indican tu libertad
la libertad de tus lomas.

Miguel Hernández

Vaso grego com representação da apanha da azeitona

Templo grego

Miguel Hernández (1910-1942) é um nome grande da poesia espanhola e de todo o mundo. O concelho de Moura guarda a duvidosa "honra" de ter sido aqui que Miguel Hernández foi preso ao tentar atravessar a fronteira, poucos dias depois de terminada a Guerra Civil de Espanha. Levado para o Rosal de la Frontera e depois para Huelva terminou os seus dias na prisão vitimado por uma tuberculose. Estes aceituneros têm tudo a ver com este mundo em que vivemos..

Paco Toronjo tem um fandango lindíssimo com este título mas não sei como é que posso colocar a música no blogue...

AUTÁRQUICAS 2009

Já há listas. E aqui em Moura são estes os candidatos:

CÂMARA MUNICIPAL
CDU
PS
PSD
CDS-PP

ASSEMBLEIA MUNICIPAL
CDU
PS
PSD
CDS-PP

JUNTAS DE FREGUESIA – S. JOÃO E SANTO AGOSTINHO (MOURA)
CDU
PS
PSD
CDS-PP

JUNTA DE FREGUESIA DE AMARELEJA
CDU
PS
PSD
INDEPENDENTES

JUNTA DE FREGUESIA DO SOBRAL
CDU
PS
PSD
BE

JUNTA DE FREGUESIA DA PÓVOA DE S. MIGUEL
CDU
PS
PSD

JUNTAS DE FREGUESIA – SANTO ALEIXO, SAFARA E SANTO AMADOR
CDU
PS





segunda-feira, 17 de agosto de 2009

MOURA - CRÓNICA DA FESTA

QUINTA-FEIRA
Quando amanhã chegares, já a festa estará a começar. Não imagino o que terás pensado que se irá passar, quando me disseste que querias vir. Talvez não te interessem demasiado as motivações profundas, os actos de fé e os gestos profanos, a ti que talvez queiras apenas espreitar uma cidade do interior e que quererás fazer em quatro dias e em quatro noites todos os caminhos da festa e descobrir um pouco de uma Moura que só dura estes dias do ano.
Das duas cidades que existem conhecerás apenas uma. Verás apenas a Moura que encontramos nas ruas, nas praças e nos largos, a do dédalo que parte do castelo e que se espraia à sua volta numa cadência que é a da passagem dos séculos. Em 800 anos, quando começou a estender-se para lá das primeiras muralhas, a cidade alastrou a um ritmo ora lento, ora rápido. Da Mouraria ao Largo de Santa Clara vão 500 metros de um lento e laborioso crescimento. Depois, o tempo acelerou-se, a cidade cresceu cada vez mais depressa, saltando muralhas, ocupando hortas já sem préstimo e criando subúrbios operários.
Hoje, antes da festa começar, há nesta cidade ruas por agora desertas e batidas pelo calor e onde poucos se atrevem a passar durante a maior parte do dia. No centro de Moura, a estas horas sem gente, só as casas enchem as ruas. É uma Moura só de fachadas a que agora se mostra, com tanto de palácios senhoriais como de habitações populares, às vezes perto umas das outras, por vezes mesmo lado a lado, numa mescla de arquitecturas sem reflexo na vida social. São casas e mais casas em ruas estreitas que desembocam a espaços em largos onde hão-de começar mais ruas e mais casas.
Para lá das paredes, feitas de solidez e protegidas, ano após ano, por sucessivas camadas de cal, já não veremos as abóbadas e as taipas, os caniços e as telhas mouriscas. Dentro dos muros das casas fica a segunda cidade, mais longe das ruas agora desertas. No íntimo das casas e dos palácios há esses mundos privados que não chegaremos a conhecer. Imaginaremos os corredores e as salas, a escadarias e os poços nos pátios. Sentiremos, sem ver, nesses sítios afastados dos olhares indiscretos, a suavidade e o silêncio.
Desta segunda cidade, dos detalhes do seu quotidiano, das vidas que nela se tecem, nada sei e nada te poderei contar. Ficaremos, assim, pelos espaços públicos, onde em breve a festa começará e onde o deserto irá ver o seu lugar ocupado por pessoas que parecem ter decidido, todas ao mesmo tempo, tomar as ruas de assalto.
Porque só chegas amanhã, não verás nem a procissão das velas desta noite, nem o ultimar das iluminações, nem sentirás aquele torpor um pouco tenso que é o começo de todas as celebrações.
A procissões nunca foste e acharias talvez estranho o cortejo em marcha lenta que esta noite se irá cumprir por um dos bairros de Moura. A cada ano cabe um bairro, ruas limpas e caiadas ainda mais que nos outros dias do ano só para a procissão passar.
A maior parte dos devotos processionários serão mulheres, empunhando uma pequena tocha, que lhes irá iluminar as faces e as mãos e transformar em espectros silhuetas, ruas e paredes. Durante o percurso o som dos passos e dos sussurros será quase sempre abafado pelos cânticos e pela voz do cura, que não parará de circular todo o tempo. O caminho é curto e em breve não estará ninguém naquelas ruas onde há pouco se via a procissão passar.
Não terás perdido grande coisa da animação quando amanhã chegares no expresso que irá descarregar poucas dezenas de pessoas no centro de Moura. Hoje vem menos gente nos transportes, combóios já não há e carros quase todos têm. Muitos dos que por estes dias arribam aqui são os exilados do destino que a vida um dia mandou para a Cova da Piedade, para a Amadora ou Moscavide. Com a festa em Julho estarão também mais deportados de Lausanne, de Genève ou doutros cantos do mundo. Vêm sempre e juram sempre que aquele será o último ano lá fora. Quase nunca é. E muitos voltam cada vez menos, vendidas as casas que foram dos pais e afastados a cada dia os parentescos.
Quando amanhã chegares, já a festa estará a começar. E tu, que apenas quiseste vir conhecer uma festa no interior, irás, em quatro dias e quatro noites,  tentar andar todos os caminhos de Moura.
 
SEXTA-FEIRA
Agora, as comemorações são em Julho, mas em tempos a festa era no fim do Verão. Depois de quatro dias de agitação, a cidade calava-se e recolhia-se. A seguir àquele estertor rápido o movimento acalmava e as noites de Moura adormeciam até à Primavera seguinte. As noites de hoje já não são tão bisonhas como as de ontem e não sei se é melhor ou pior assim. Hei-de também contar-te as histórias de festas arruinadas por bátegas outonais e as eternas discussões sobre a melhor data para honrar a padroeira. Não foi fácil chegar aqui, porque onde há três mourenses haverá sempre três opiniões.
Quando o dia nascer as iluminações estarão apagadas e o movimento das ruas terá a calma de quase sempre. Perderás, assim, o primeiro acordar da festa, a expectativa do que está para vir, as horas mortas da sexta-feira.
Como só chegas à tarde não ouvirás a primeira alvorada, às oito da manhã. Começa-se sempre desta maneira, como se fosse preciso sacudir os espíritos e avisar toda a gente que tudo está a começar.
Não verás, também, os que agora ainda preparam a festa e que ultimam tudo à pressa, cada vez mais depressa. É um emaranhado de fios e cabos, ferros e encaixes, parafusos e lâmpadas. À hora do começo tudo estará pronto, embora pareça sempre que não.
Quando logo chegares irei buscar-te ao expresso e correremos num passo rápido pelo centro de Moura até ao sítio onde, oficialmente e com moderada pompa, a festa começa. Virá o governador civil, que será aguardado pelas autoridades locais (sinónimo da comissão de festas, dos presidentes da câmara, da assembleia, das juntas, dos vereadores, dos representantes dos colectividades e das forças da ordem). Virão também as bandas e os escuteiros, que farão as vezes de guarda de honra. Todos cumprimentam todos e murmurarás que, paramentados de fato e gravata, te parecem tão iguais que não os consegues distinguir uns dos outros.
A cerimónia é a mesma, melancolicamente a mesma, desde há 30 anos. Passou revoluções, a agitação de uns dias e a calma de outros, torneou dias de chuva e crepúsculos de calor e não mudou nem um pouco. Antecipo, por isso, o que se vai passar. Haverá foguetes, mais cumprimentos, as luzes coloridas acendem-se e, sem perder tempo, desfilarão todos pelo centro de Moura até à igreja da padroeira.
A igreja da padroeira é, já o saberás então, a de Nossa Senhora do Carmo, mandada fazer em terrenos outrora isolados do mundo e que hoje estão quase no centro da cidade. O convento é sítio antigo de pastores de almas que, com o passar dos séculos, juntaram ao domínio espiritual um sucesso temporal digno de registo. As posses das carmelitas iriam permitir obras e renovações, cujo resultado agora admiras enquanto nos aproximamos devagar.
O edifício tem duas entradas - a igreja, de frente, o convento, à esquerda - e é difícil decidir qual delas gostaríamos que fosse a principal. Depois, lá dentro, a impressão inicial esbate-se um pouco, como se todo o engenho se tivesse consumido a imaginar e a construir as duas fachadas.
Na igreja, as luzes festivas escondem um pouco os almofadados da frontaria. O que ali se vê é a obra do século XVI, que esconde quase por completo os poucos vestígios que ficaram do pequeno templo medieval, substituído quando os negócios terrenos permitiram um pouco mais de grandiosidade e um pouco mais de ostentação.
À esquerda, estão as três aberturas da galilé, as pedras de granito a darem vida e contraste à cal. Pela frontaria de recorte clássico entrava-se em tempos para o hospital, que hoje já não é ali. O edifício está, por agora, fechado e não poderás ver o claustro, que é bonito e tem plantas no meio. Gostava de poder mostrar-te o silêncio das arcadas, as histórias e os segredos que por lá se escondem, mas desta vez não será.
Entremos, por isso, na igreja. Por ser festa tem mais movimento que noutras alturas. Parece um estaleiro silencioso, com a azáfama contínua dos que preparam as cerimónias religiosas, entre velas, alfaias e imagens. Se tudo gira à volta do pároco, a nossa atenção irá para a imagem da padroeira, ao fundo da nave norte, e para o altar, onde um grupo de devotas ensaia os cânticos que hão-de repetir vezes sem conta por estes dias.
Saiamos agora e subamos até ao centro, onde está a começar aquele ritual sem hora marcada dos reencontros, dos amigos que há muito se não viam, da apresentação dos filhos que só cá nasceram, que vivem longe e que assistem, entontecidos, ao desfilar de amigos dos pais e da família. Apertam-se mãos, dão-se abraços, beija-se e volta-se a beijar.
Ficarás um pouco de lado, meio à margem, apesar das minhas insistências nem por isso muito convictas. Vejo-te à distância, rodopiando devagar enquanto olhas em volta os vendedores de balões e de algodão doce, as barracas das farturas e as mesinhas onde o polvo, mais queimado que assado, espera compradores.
Antes da noite acabar, o palco em frente à Câmara conhecerá a primeira animação. Os grupos corais sucedem-se e tu observas, numa curiosidade estrangeira, que cantam todos da mesma maneira. Ponho ar de ultraje e tentarei explicar-te, sem grande êxito, algumas das subtilezas do cantar alentejano.
Depois, muito lentamente, a praça irá esvaziar-se. Quase nada irá mexer até ao nascer do sol. Talvez passe um ou outro carro, de algum boémio mais persistente. Talvez a cruzem os que ficam sempre para o fim, aqueles que têm receio que todo o tempo não seja suficiente nos quatro dias. Depois, haverá cada vez menos sons. Depois nada. Até o silêncio ser total.
 
SÁBADO
Começa o dia com a largada dos touros. No final, vais dizer-me que esta parte te pareceu uma sensaboria e sinto-me tentado a quase concordar.
A largada é numa avenida que tem casas de um lado e a muralha que antes defendia Moura do outro. Nos passeios, frente a frente, há laranjeiras. Umas servirão para abrigar os espectadores do sol que começa a fustigar as ruas. Outras serão burladeros postos ao alto, ao serviço dos mais aventureiros. De um lado da avenida, o do passeio, circula-se com esforço, entre a parede das casas e as vedações de madeira, feitas com toros laboriosamente atados com arames. É nesse corredor que se amontoam os que, e somos quase todos, não querem afrontar as feras de perto.
A avenida está dividida em três sectores, um para cada bicho. Evita-se assim que os touros passem o tempo colados uns aos outros, desencorajando ainda mais os candidatos a matadores. Poucos tentarão o tirocínio de toureiro ou de forcado e, assim, os animais andarão toda a manhã de um lado para o outro, num atarantamento sem fim.
Boceja-se e já se bebe cerveja. As quantidades vão surpreender-te. A mim também, que noutros tempos não se bebia assim, fora de horas e sem conta.
Alguns, de câmara de vídeo e máquina fotográfica, esperam que aconteça alguma coisa, para mais tarde mostrarem aos amigos e colegas. Mas não há nada para ver, com os magotes encostados às tábuas e os touros sempre num trote desengonçado até à hora do almoço.
Tento nessa altura encontrar-te uma daquelas tabernas em que queres entrar como se quisesses conhecer um museu. As antigas, soturnas e silenciosas, são cada vez menos. Dantes, há sempre muitos dantes nestas crónicas, as tabernas tinham daquelas portas como nos filmes do oeste. Rangiam muito, para trás e para a frente, quando as empurrávamos e havia sempre um balcão de mármore, paredes caiadas em tempos, cobertas por cartazes do Benfica de Eusébio, do cantor de charme Tony de Matos e do grande matador Armando Soares. À volta de mesas quadradas, forradas com oleado aos quadrados vermelhos e brancos, havia sempre homens de ar sombrio pregados a cadeiras de madeira. O interior era sempre o mesmo e os homens também.
É a uma dessas que queres ir, um sítio imaginado mas que talvez já não exista. Entramos numa das coutadas que ainda resiste e ficarás supreendida com a indiferença que despertas. As novas gerações fizeram em cacos os velhos preconceitos e as mulheres mais jovens já entram nas tabernas. Bom, em quase todas. Outros tabus antigos ainda persistem e por isso não ficaremos ao balcão. Com suavidade, somos conduzidos mais para dentro, para longe, porque nos dizem que assim estaremos mais cómodos e mais à vontade.
Na sala de fora já se canta, num tom avinhado e alegre. O tempo sobra neste começo de tarde. Os perfumes do sul passam sobre a mesa enquanto bebemos até o coração aquecer. Falaremos da vida e da festa, de tudo e de nada, enquanto espreitas de vez em quando a entrada da taberna, onde não pára o movimento dos passos, dos homens com bonés, dos copos sobre o balcão, despejados devagar mas sem tréguas.
Quando a hora do calor já tiver passado decidimo-nos, enfim, a sair. Ao fim da tarde poderemos assistir à venda da carne dos touros que andaram pela largada. Noutros tempos havia, depois da meia-noite de sábado, uma distribuição gratuita de carne e de vinho à população. Uma autêntica festa báquica. Todos os jovens aprendizes dos prazeres da vida da minha geração faziam os possíveis por ter aproveitamento nessas cerimónias de iniciação, o que normalmente se conseguia com razoáveis classificações e algum esforço físico. Alguns abusos, os bons costumes e o sentido da decência puseram, contudo, cobro à farra, vendo-se as comissões de festas livres daquele embaraço e protegendo-se os mais entusiastas de eventuais manhãs de arrependimento.
À noite não se conseguirá circular na praça principal da cidade. Até ao fogo de artifício, que começará pontualmente à meia-noite, poderemos ainda espreitar o esforço das bandas que tocam no meio de uma algazarra cada vez maior. Desistimos porque o caos tomou conta do centro de Moura e não há música que se faça ouvir nem outra coisa que se possa fazer.
Iremos por isso atrás do grupo coral, rua abaixo até, de novo, à igreja do Carmo. Se quase todos passam pela igreja nessa noite, a visita cantada em honra da padroeira é um momento à parte, carregado de solenidade.
Apreciarás os belíssimos trajes do grupo, embora eles representem agora pouco mais que uma homenagem à vida da lavoura. Já nada é o que foi e os antigos gestos e rituais da terra têm cada vez mais lugar numa distante vitrine de recordações.
Quando eles saem, o silêncio volta por instantes. Há menos gente agora, os homens atrás, como que receosos ou meio envergonhados não se sabe bem de quê. Nestas terras do sul, os homens ficam sempre assim, à distância. As mulheres, quase sempre de mais idade e vestidas de negro, ocupam os bancos da frente. Os nossos cochichos perturbam o silêncio da igreja. Alguém se volta para trás, de ar grave. Nem um músculo da face se moveu mas o gesto e o olhar estão carregados de desaprovação.
Quando saímos, três estrondos recordam-nos que é a hora dos fogos de artifício. Primeiro o solto, lançado da torre de menagem e que irá pejar as ruas mais próximas de canas; de seguida o preso, uma chuva de luz deixando o ar carregado de cheiro a pólvora.
Cumprem-se nessa altura mais dois rituais da festa. Primeiro, assistir ao fogo de artifício. Segundo, comentar que o do ano passado foi melhor e mais vistoso que o deste ano. Sempre as coisas assim foram e não se espera que mudem.
 
DOMINGO
Já é domingo. O dia começa com um baile e acaba com outro. Há menos gente agora, depois do fogo. Os mais velhos já dispersaram, a maioria dos mais novos prefere os bares e a cerveja ao pasodoble e às rumbas. Há mais gente no Largo de Santa Comba a olhar que a dançar e só a espaços o conjunto de baile consegue entusiasmar o público.
Iremos então à procura dos mais novos, dos que estão mais perto da tua idade que da minha. Iremos pelas ruas, sem destino, por entre essa juventude sempre esfuziante que tenho como uma das imagens mais persistentes de Moura e que enche as ruas mais antigas da cidade. Gesticulam, cantam, abraçam-se, beijam-se e divertem-se sem preocupações e com todo o tempo do mundo à sua frente. Tens um pouco de inveja deles e eu ainda mais. Deixamo-nos ir, minuto atrás de minuto, hora após hora, até já ser muito tarde. Ou muito cedo.
É agora a altura de mais um ritual. O de confortar o corpo e o espírito com a ajuda de uma açorda, esse milagre culinário de água, pão, azeite, coentros, alho e poejos. E mais um pouco de bacalhau e um pouco de vinho tinto, para que nada falte. Hesitarás primeiro e elogiarás mais tarde, a meio caminho entre a sinceridade e a cortesia.
Partamos agora, com o resto de um cortejo espontâneo, em direcção à praça de touros. O frenesim parece aturdir-te ou então esse ar de reserva será sinónimo de algum cansaço ou não gostarás de ver outra vez um espectáculo que achas sanguinário e brutal.
Os animais sucedem-se na arena, mal se aguentam nas pernas e querem escapar-se a cada investida dos toureiros. Fogem das pegas e driblam, em golpes quase rápidos, os que os tentam apanhar. Ris-te enfim, dizendo que a tourada te parece agora às avessas. O público ainda não perdeu a energia e grita e aplaude e apupa, tudo ao mesmo tempo. Foi para isso que todos viemos, para nos divertirmos com os gestos de falsa temeridade dos que tomaram a arena por sua conta. A festa esmorece finalmente, quando já o sol se faz anunciar lá longe e por detrás dos muros da praça de touros começa a despontar o perfil do castelo.
Voltamos ao centro, no meio dos que ainda não pararam nem desistiram. Perguntas-me, pela primeira vez, se não se cansam. Fico a pensar que sim, os de fora cansam-se sempre de madrugada.
Abreviamos, por isso. O café e os bolos no mercado, as farturas, talvez uma aguardente ou um licor de poejo, serão despachados mais depressa do que gostaria. O sol já vai alto quando regressamos. E agora, quando a cidade devia animar-se, as ruas esvaziam-se, embora por pouco tempo.
Logo mais, já para o fim da tarde, começará a procissão, o ponto alto da festa. Não resistes a corrigir-me e a dizer que o ponto alto de uma festa religiosa é a missa. Voltarás atrás quando vires o happening social que é a procissão de domingo. Vão todos, vamos todos, os crentes, os ateus e os agnósticos.
A procissão tem sempre a mesma maneira de se organizar, com a guarda republicana à frente, depois a imagem do Santo Condestável, a seguir uma banda, um pouco mais longe a Senhora do Carmo e o pálio logo atrás, mais outra banda e, no fim, muita gente, num magote anárquico. Pelo meio ficam as confrarias e a comissão de festas, em lugar de destaque, entre os cordões de fiéis. Há escuteiros e padres de megafone em punho, tentando pôr ordem numa indisciplina que está na massa do sangue indígena.
A procissão move-se devagar, ao ritmo das bandas, entre as filas de espectadores. Há sussurros, comentários e, talvez, um pouco de má língua. Observarás, perspicaz, que as hierarquias sociais são bem visíveis nos papéis destinados a cada um na procissão, mas ninguém parece ligar muito a essas coisas.
Acima das nossas cabeças, as janelas vestem as suas melhores colchas, uma homenagem cheia de cor à fé que vai passando. Em baixo continua o desfile, pelo qual esperaremos várias vezes. Apanhamo-lo na primeira esquina, esperamos que passe, iremos adiante, veremos as mesmas pessoas, ultrapassaremos a multidão  mais uma, duas, três vezes, até tudo acabar, já com o Sol a pôr-se lá longe, por detrás dos cerros e das escarpas que separam o Alto do Baixo Alentejo.
A procissão repete-se todos os anos, reescrevendo-se sempre como um velho palimpsesto. Ainda assim, algumas tradições perderam-se para nunca mais voltarem. Até há uma dezena de anos, não mais do que isso, desfilavam dezenas de pagadores de promessas. Pequenas nossas senhoras, pequenos anjinhos e joões baptistas em miniatura misturavam-se com os que levavam sobre bandejas as razões das suas promessas, que andavam pelas ruas antes de serem postas nos altares da devoção de cada um.
Já quase não verás isso e por pouco não me acusarás de tudo mudar tão depressa. Para trás ficaram dois milénios de combate a este paganismo remoto e que é também uma das mais profundas tradições mediterrânicas. Tudo - repressões, campanhas, ameaças, falas mansas - foi inútil, até finalmente se instalarem na vida o comedimento, o parecer bem e os bons costumes. E, assim, o colorido de algumas coisas antigas começou a dar lugar a tons mais cinzentos e bem comportados.
À noite mergulhamos durante umas horas na habitual corrida de touros de domingo. Suportarás, uma vez mais, a provação de um espectáculo taurino, agora na versão da festa aristocrática dos tricórnios, das casacas rebrilhantes, dos ferros longos e curtos, da temeridade forcada, dos campinos. Nada, nem o colorido, nem o toque cadenciado da banda, nem os aplausos, nem as voltas à arena te arrancarão a um estado de transe a que só o final da corrida virá pôr cobro.
Regressamos ao centro, quando Moura começa outra vez a cair no silêncio, e iremos até ao jardim, construído sobre a velha muralha dos tempos da Restauração. Dizes, com ironia, que os anarquistas haveriam de gostar de uma ideia assim, canteiros de flores sobre um templo da guerra.
Não há mais ninguém no jardim a esta hora. Um contraste nítido com festas que já lá vão, quando os bailes eram sempre aqui. O excessivo entusismo de alguns e as rixas, que sistematicamente devastavam flores e tudo o que estivesse pela frente, levaram a mudar o sítio da pista de dança. Depois vieram as noites na discoteca e depois vieram os bares, aqueles que viste cheios de juventude. E, depois, é próprio dos da minha idade dizerem que os bailes são uma sombra do que já foram.
 
SEGUNDA-FEIRA
Segunda-feira é a coda da festa. A segunda-feira é sempre mais rápida e mais curta que os outros dias. Um pouco mais melancólica, também. Quando a festa era em Outubro nunca se sabia se choveria e se isso iria arruinar os cofres da comissão. Sim, porque era no último espectáculo, o de segunda-feira à noite, que se ia buscar o alento para começar tudo de novo.
Este ano não haverá concerto de música clássica, esse verniz de cultura que durante muitos anos ocupou a tarde do último dia. Não ouvirás, por isso, o efeito ribombante das peças mais populares dos grandes autores, tocadas com energia e brilhantismo pela banda do exército, sob as abóbadas da igreja de S. João.
Com o dia meio vazio - sempre me pareceu menos de festa que os outros - passearemos mais um pouco. A praça, vezes sem conta. Começas a apanhar o ritmo, ao cabo destes dias intensivos de hábitos mediterrânicos. Recordas o que deste sítio escreveu Saramago e recitas-me o nome das árvores que fazem o suave semi-círculo que acompanha os edifícios públicos encostados às muralhas do castelo. Loendros, loureiros, freixos, faias, olaias, mostras um pouco de erudição que embaraça o meu desconhecimento. As árvores, contudo, não abrigam ninguém nestas horas de calor e servem apenas para consolar os olhos e nos dar uma ilusória ideia de frescura.
Esperaremos sem pressas o fim da festa. É indiferente saber quem actua, como faço questão de te dizer. Vai-se sempre, só porque não se quer faltar. Diverte-te saber que em tempos os espectáculos se faziam na praça de touros, crismada por um dia como Esplanada Salúquia, como se o sítio não fosse o mesmo. Bilhetes mais caros na arena, onde se alinhavam mesas e cadeiras, entradas a preços populares lá em cima, nas bancadas. E havia esse requinte chamado "lugar de pista", que permitia que se ficasse no redondel, mas de pé. Parece-te uma ideia bizarra, embora te explique que era a solução preferida de boémios, farristas e conquistadores, aqueles que se alheavam do espectáculo e ficavam a beber, a conversar ou a fazer olhos de carneiro mal morto às mourenses mais belas.
A função agora cumpre-se no velho campo da bola, com o terreno de jogo ocupado pelo palco, pelas cadeiras, pelas mesas e pelas bancadas. O fim de festa é, ainda hoje, um exemplo perfeito de ecletismo musical. Há sempre três-artistas-três mais um grupo de baile. Os artistas distribuem-se, democraticamente, pelos vários escalões etários do público, começando o espectáculo pelos tons mais suaves e subindo progressivamente o nível dos decibéis. Na parte final os mais velhos já terão debandado discretamente, deixando o terreno todo para os jovens.
Quando chegar a madrugada não haverá mais nada a fazer ou a dizer. E quando amanhã te levar ao expresso também não te perguntarei nada. Nem sobre a festa, nem sobre Moura, nem do que mais e menos gostaste, nem nada. São aqui difíceis as comparações e os debates. Cada um de nós vê os sítios e as coisas de uma forma diferente e única, com o nosso olhar a reflectir aquilo que somos, o que aprendemos, o que amamos e o que não.
Ficaremos só com a memória destes dias, mesmo sem saber que Moura conheceste e se conseguiste fazer todos os caminhos da festa. Ficarei sem saber que Moura levas contigo, se algum dia voltarás e que cidade irás encontrar e que outros caminhos quererás percorrer.  
Mariano Piçarra
António Cunha
José Manuel Rodrigues
 
Moura - crónica da festa é uma edição da Câmara Municipal de Moura. O esquema de produção foi definido em 1999 e a festa fotografada, no Verão de 2000, por Alberto Frias, António Cunha, António Pedro Ferreira, José Manuel Rodrigues, Mariano Piçarra e Rui Cunha. O texto, que aqui se reproduz, foi por mim terminado poucas semanas depois. O livro, extenso registo a cores e a preto e branco do que são as Festas de Nossa Senhora do Carmo, foi lançado ao público em Julho de 2001. Entre a ideia e o lançamento o fotógrafo José Manuel Rodrigues foi galardoado com o Prémio Pessoa.
 
Fiquei, desde o início, com a sensação que em Moura as pessoas não gostaram especialmente do livro. Demasiado intelectual, chegaram a dizer-me. O trabalho deu, ainda, origem a equívocos mais ou menos divertidos. Um deles foi o de que a ficcionada jovem que conduzo ao longo da festa era na realidade "alguém" e que "alguma coisa" se teria passado. Nunca me dei ao trabalho de dar qualquer explicação sobre a matéria.
 
Ultimo por estes dias um livro sobre Santo Aleixo. Um outro, sobre a Amareleja, começa agora a ganhar forma. Será um projecto a desenvolver com dois fotógrafos de renome internacional. Sou fiel, nesse aspecto à velha máxima de Oscar Wilde: I have the simplest tastes. I am always satisfied with the best.