sábado, 20 de dezembro de 2008

ENRIQUE PONCE A NOBEL DA LITERATURA



CADA MOVIMENTO NA ARENA É UM POEMA ENORME.

¡Toro!

Uns segundos antes ainda se ouviam alguns sons na praça. Mas naquele momento já não. “¡Mira toro!”, desafiou Enrique Ponce, de frente, imóvel e ousado, destemido mas calmo. Assim, numa voz firme, mas não muito alta, no meio daquele silêncio de religião da praça. “¡Mira toro!”, antes do bicho arrancar, nem muito devagar nem muito depressa. Quase parado, quase em câmara lenta, Enrique deixou o touro passar, num movimento vagaroso, numa verónica elegante. “¡Mira toro!” e naquela voz da tarde de Verão resumem-se milhares de outras vozes e milhares de outras arenas. Debaixo da capote de Enrique passaram, em poucos minutos, a lenda do minotauro, as feras dos circos romanos e a vaca que matou um califa, numa noite cálida de Marrakech. O touro de que Enrique agora se esquiva já foi mil vezes retratado. É ele que está pintado nos vasos áticos, é ele que, desde há milhares de anos, dá colorido aos frescos das paredes e aos mosaicos dos chãos. Já se chamou Pocapena, Islero, Avispado. Foi ele quem matou de morte horrível Manuel Granero e El Yiyo, no dia em que, também eles, invocaram “¡mira toro!”,. Foi ele quem aniquilou a arte de Joselito e a de Manolete. Foi ele quem inspirou as mais trágicas páginas de García Lorca.

Já passa das cinco da tarde e nos minutos que se seguiram ninguém respirou na praça, juro que não, enquanto se ouvia o respirar da fera, o bailado de Enrique, sempre à beira do triunfo, sempre a um passo da tragédia. “¡Mira toro!”, dissera ele, não muito alto, o suficiente para que o touro arrancasse, passando primeiro à direita, depois à esquerda. Às vezes achamos que podemos pedir mais, talvez ainda um pouco mais de risco, talvez mais uma centelha de temeridade, mas isso não é para todos os dias nem para qualquer sítio.

O tempo parou. Quem vencerá a batalha? Enrique ou a besta?

“¡Mira toro!”, que a lide acabou, o touro já amansado, vencido para sempre. É a hora do triunfo, lenços brancos, uma orelha, talvez duas. O ar contido nos pulmões sai de uma vez e a tensão voou com a alma da fera. Enrique dá uma volta à praça. O homem que agora sorri e bebe o vinho que alguém lhe atira dos tendidos não é o gladiador de há pouco. Estranhamente, a vitória sobre o touro transformou o semi-deus num actor amado. Neste momento, Enrique Ponce é apenas isso. O actor sai. Cai o pano. Está sol sobre a Andaluzia.

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